Primeiras Impressões: “Eu Ainda Tenho Coração”

Depois do aclamado Esculpido a Machado, sua estreia em 2021, Leall chega com seu segundo disco Eu Ainda Tenho Coração, neste dezembro de 2023, um ano com ótimos lançamentos no rap nacional e muitas surpresas. 

Cria do RJ, o MC carioca surpreendeu a todos no seu primeiro disco com a sua capacidade de contar histórias e relatar de forma introspectiva a sua vivência. Já neste segundo álbum, Leall se encontra em uma posição muito diferente. 

Há uma expectativa muito grande criada sobre o artista, afinal ele faz parte de uma das gravadoras mais relevantes da cena, a Rock Danger e, apesar de todo sucesso, se mantém muito fiel a qualidade em seus lançamentos, sejam singles ou participações.

Foto por: @youknowmyface

Diante disso, nos perguntamos se Eu Ainda Tenho Coração atende às expectativas criadas em cima do sucesso adquirido por Leall? Nós da Flagra tivemos acesso ao disco alguns dias antes e viemos trazer um pouco da nossa avaliação nas primeiras audições deste lançamento.

Surpreendido de novo

Escrito por

Kleber Briz

Esculpido a Machado foi um disco que me pegou de surpresa, mas Eu Ainda Tenho Coração me impressionou ainda mais. Não estava esperando um disco com tanta maturidade e qualidade do Leall. 

Novamente, Leall apresenta, de certa forma, um conceito bastante preciso: apesar de toda violência que passou na vida, ele ainda é capaz de sentir amor. Isso se traduz a partir da paternidade, que contrapõe todas experiências negativas ao longo de sua vida. Como um bom contador de histórias, o carioca consegue entregar todos esses sentimentos em linhas e conceitos ao longo das faixas que carregam uma certa introspecção. 

E sua compaixão quanto que vale
Gênios morrem de overdose
Meninos defendendo artigo 12
Seremos o maldito fruto podre

Em “Vivências”

Mas isso não acaba apenas nas letras, a escolha de produção aqui é primorosa. Samples inesperados, como na faixa produzida por Babidi que dá nome ao disco e possui um sample de Jorge Vercilo, ritmos que variam, do grime ao boombap, e entregas bastante sentimentais, como acontece em “Medo de Quase Nada”. 

Tudo isso dá muita coesão a este disco que mostra um Leall muito maduro e diferente do que nos acostumamos a ouvir. Até mesmo nas participações é perceptível que Leall não se importa em ter o melhor verso, mas trazer seus convidados para fazer o que sabem melhor dentro do conceito e produção de cada faixa, mesmo quando o assunto é se divertir, como é o caso do single “O Crime e a Música” com Ryu, The Runner e Xamã.

Eu não sei se este será o melhor disco de 2023, mas com certeza será um disco que não irei esquecer tão cedo. Pra mim, Eu Ainda Tenho Coração coloca Leall como o melhor da sua geração com bastante folga.

Foto por: @youknowmyface

Ascensão social e a busca pela quebra do sistema

Escrito por

David Silva

O disco tem um tom diferente de seu antecessor. Se Esculpido a Machado nos mostrou como as vivências de Arthur Leal, cria de Marechal Hermes, influenciou na persona Leall, Eu Ainda Tenho Coração nos mostra como a fama atinge o jovem carioca.

As letras relatam episódios — alguns nas entrelinhas, outros de forma explícita —, vividos por um jovem negro que acabara de ascender socialmente. Em “Sensação de Liberdade”, faixa com participação de BK’, Leall relata um episódio de racismo sofrido em um aeroporto.

Ontem eu tava no aeroporto com a Rock Danger voltando pra casa
No freeshop escolhendo um vinho, segurança quase me cercava
Na mesma hora eu comentei com o Big (fez dinheiro mas tu num tá rico)
Do nosso lado uma excursão pra Disney, eu o único preto despachava as mala

Em “Sensação de Liberdade”

O rapper mostra que o negro que ascende socialmente e se torna figura comum em espaços, outrora ocupados por brancos, pode ser alvo de preconceito e discriminação por parte de pessoas que se sentem ameaçadas pela sua presença. 

Já em “Malefícios do Dinheiro”, Leall versa novamente sobre sua ascensão social. Outrora sem dinheiro e sem emprego, o jovem conquistou uma grande quantia de capital de forma rápida e se sente influenciado pelo luxo. A crítica aqui é como Leall compra coisas fúteis, agora que há a possibilidade de fazer sem que sofra as consequências da pobreza, após crescer entre assaltantes de bancos, traficantes e contrabandistas, em Marechal Hermes.

Foto por: @youknowmyface

O rapper versa como todos correm atrás do “sonho americano”. Na busca de prata, tudo que se encontra é calos nos dedos e nome no Serasa. Todos se tornam refém de um sistema massivo, que prejudica e suga até não poder mais quem está nele. Apesar de todo o capital conquistado, Leall aponta que ainda precisa de um álibi, pois é, acima de tudo, um homem negro em meio à uma sociedade racista.

Na mesma música, há um dos versos que eu considero como um dos mais impactantes do carioca:

Que esse sistema sujo jamais corrompa minha mente
É que eu vou morrer atirando, eu sou um combatente
Igual meu avô que trabalhou a vida inteira
E morreu no caminho de casa só depois do expediente

Em “Malefícios do Dinheiro”

Aqui, Leall critica o sistema que expôs durante toda a música, mas a crítica é reforçada ainda mais quando o rapper conta que seu avô faleceu, após mais um dia de trabalho de tantos que passou sendo engrenagem para a grande máquina funcionar. A homenagem para o avô — que inclusive está na foto de perfil do Whatsapp de Leall — é linda, mas evidencia que a história de quem está presente no sistema é triste e finais felizes são insólitos.

O desafio da consistência

Escrito por

Paulo Neto

Quando um novo talento musical emerge rapidamente, exibindo qualidades tanto rítmicas quanto poéticas, geralmente está em seu estágio inicial, como um diamante bruto pronto para ser lapidado. 

Essa transformação requer uma combinação de fatores positivos que contribuem para esse objetivo, como o estudo de referências significativas, a absorção de conselhos de veteranos experientes e a formação de parcerias com indivíduos ambiciosos e talentosos, que compartilham o sonho de ser alguém relevante na história do rap nacional.

Nem todo mundo alcança o feito de lançar um dos melhores álbuns do ano logo em sua estreia, um trabalho tão potente e emocional, permeado por narrativa e lírica afiadas como o próprio machado que o esculpiu. 

A necessidade de desabafar e extravasar dores e traumas deu forma à sua arte. No entanto, surge a questão de como manter o mesmo nível no próximo projeto. Se você já compartilhou suas experiências mais intensas, qual será a mensagem agora? 

Foto por: @youknowmyface

Dessa vez, Leall apresenta a síntese de sua jornada ao longo dos anos, destacando a capacidade de transcender quem se tornou. Ao expressar que, apesar de ter sobrevivido a uma história de vida conturbada e carregar consigo traumas do passado, ele ainda consegue abrir-se para experiências positivas, como permitir-se amar, apreciar sua família e celebrar conquistas. 

Essa evolução revela um coração resiliente, uma progressão natural e que faz todo sentido após o tom mais hostil do álbum anterior. Além disso, é notável que a evolução não se limita a isso. É evidente a progressão técnica de Leall, pois ele se libertou do estilo rítmico que se apoiava fortemente nos grimes e drills, que sempre foram sua zona de conforto. 

Agora, ele demonstra um controle refinado sobre suas rimas, diversificando seus flows. Deixou de lado a pressa nas palavras, adotando uma pontuação cuidadosa e elegante sobre batidas inegavelmente poderosas, se aventurando do trap ao boombap.

Ao unir habilmente todos esses elementos, Leall nos presenteia não apenas com um álbum imperdível, mas também com uma evolução fluida e madura de sua capacidade artística.

Vale a pena ouvir “Eu Ainda Tenho Coração”?

Fica evidente que Leall impressionou a equipe da Flagra neste novo álbum, não apenas por demonstrar uma evolução, mas também por apresentar um disco muito conciso desde a produção até o conceito geral, que aparece em suas letras.

Dos produtores às participações, o disco não deixa nenhuma ponta solta. Tudo se encaixa perfeitamente para criar uma atmosfera melancólica diante das situações apresentadas, mas ainda sim esperançosa tal qual a afirmação presente no título. Até mesmo a capa, que não comoveu a equipe em um primeiro momento, ganhou outros contornos após ouvirmos o álbum por completo.

Dito isso, embora seu lançamento tenha sido a poucos dias do fim de 2023, não nos resta dúvida que este disco chegou para se firmar como uma das melhores obras do rap nacional deste ano. E para confirmar Leall como um artista que deve continuar a nos impressionar nos próximos anos, servindo inclusive como referência para seus pares.

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