Flagra Essa Faixa: “Olho de Tigre”, a ascensão de um ícone

Djonga é um dos artistas mais relevantes da cena do rap nacional da última década. E dentre as incontáveis músicas e versos de Gustavo, uma se tornou um verdadeiro hino da juventude negra brasileira: a faixa “Olho de Tigre”. Lançada no projeto Perfil da Pineapple em 2017 e produzida por Malive e Slim, é a canção mais famosa do MC mineiro e uma das faixas mais icônicas do rap nacional dos últimos anos.

Conversamos com o MC sobre a produção da música e sua importância no contexto de sua carreira, bem como seu significado para os ouvintes.

Sensação, Sensacional

“Olho de Tigre” é um belo exemplo das características que sobressaem nas composições do Djonga, um artista que é carismático não só pela habilidade de produzir rimas juntando informações e referências de uma maneira única, mas também por entregar muitas dessas linhas com uma fúria que pertence a uma juventude que cresce carente de oportunidades e que precisa ser ouvida. A faixa faz uma crítica aguçada à sociedade brasileira e engloba temas de uma forma particular e profunda, sem perder a irreverência característica do MC mineiro.

Eu tinha acabado de lançar “Atletas do Ano (Remix)”, que tinha a frase “Djonga sensação, Djonga sensacional”, e como eu gosto de fazer referência a mim mesmo nas minhas letras pensei em trazer isso para o refrão, mas completar com algo impactante.

O nome da faixa vem pela frase “eye of tiger”, que faz referência a música “Eye of the Tiger”, do Survivor, que é trilha sonora do filme Rocky III. O olho de tigre eu pensei no sentido de ver longe, além, de uma visão ampla mesmo. Porque a faixa não fala só sobre racismo, mas sobre várias questões que estou enxergando na minha vida naquele momento.

Comentário nas redes sociais: Mas vocês pregam paz e falam fogo nos racistas, vocês acham certo?
Djonga: Sim – Vídeo do Quebrando Tabu

As músicas de Djonga, além de encantarem pela qualidade técnica ou pelo ritmo, também são muito informativas. O mineiro é muito abrangente nos tópicos e temáticas, tendo músicas para agradar diversos gostos. E, para além disso, muitos dos assuntos são tratados com certa profundidade e consistência, tais como ocorreram com o debate racial, fascismo e machismo em “Olho de Tigre”.

Te informando Jornal Nacional
Talvez por isso que me chamam de sensacional

Quando eu escrevi ela [“Olho de Tigre”] pensei muito no poder que eu tinha por estar naquele espaço, um canal [PineappleStormTV] com muita visualização e no alcance que aquilo ali iria gerar. Pensei em fazer uma parada que ao mesmo tempo fosse uma tiração de onda, mas que abordasse os temas que eu abordo desde sempre, tá ligado? Para mim são temas relevantes e importantes pro momento que a gente vive. Quando eu fiz aquele refrão, eu senti que aquilo era uma parada que tinha que ser falada daquela forma por ser algo muito maior que eu.

E o sucesso é devido ao que significa [fogo nos racista] no contexto que a gente vive, sacou? Coisas que são muito reais e diretas batem no coração das pessoas. E, além disso também é verdadeiro e direto, está em tudo que a gente vive e tem vivido nos últimos anos. Tantas mortes de criança e de jovens negros que vem acontecendo há muito tempo, não só agora. Aquele grito “fogo nos racistas” vem de um acúmulo de frustração, tristeza e raiva por tudo que o racismo causa e a consciência que isso traz. É por isso que aquele grito impacta tanto até hoje.

Meio que tá no ar

Nos  últimos anos, tivemos um aumento de simbologias e ideias abertamente fascistas no contexto brasileiro, intensificadas, principalmente, por figuras públicas do governo brasileiro. Junto a estas pessoas, uma parcela da sociedade tem concordado, tanto de forma consciente quanto inconsciente, com esse tipo de posicionamento. em 2017, Djonga já evidenciava estas questões em “Olho de Tigre”:

Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro
E pra salvar o país, Cristo é um ex-militar
Que acha que mulher reunida é puteiro
Machista tá osso, e até eu que sou cachorro não consigo mais roer
E esse castelo vai ruir, e eles são fracos vão chorar até se não doer

O principal alvo do MC é o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. As linhas mostram as contradições das falas e atitudes do Presidente, que, junto com sua própria família e uma legião de apoiadores, distorcem o discurso cristão e apresentam um conteúdo inflamado e autoritário, pautados na mentira e no senso comum.

Além do mais, Djonga reforça mais um aspecto presente no imaginário popular: a personificação da salvação na figura dos militares. Um estudo mostra que, no auge do governo Bolsonaro, 45% dos brasileiros acima de 16 anos consideravam as Forças Armadas como a instituição mais confiável no país. Essa imagem, desde a metade do século XX, atribui à instituição um caráter “reformador” e “idôneo”. Características associadas à figura do presidente por parte dos seus apoiadores devido ao seu passado militar. São esses os fatores que favoreceram o apoio da população ao regime civil-militar de 1964 e a eleição do ex-presidente em 2018, juntamente com o cenário de alta corrupção política inflamado pelo imaginário popular.

Em 2017, vários vídeos e citações antigas de Bolsonaro viralizaram pelas mensagens machistas e homofóbicas, como a “fraquejada” que concebeu sua filha Laura, a defesa aos baixos salários para as mulheres porque engravidam e diversas outras falas atacando mulheres e outras minorias.

Sou um cara que acredita que a arte tem o papel de provocar. “Olho de Tigre” é uma das minhas músicas mais provocadoras, embora acredite que tenha algumas mais provocadoras do que ela. Quando falo de provocar é no sentido de provocar reflexão. Independente da forma de arte que estivesse fazendo, eu iria por esse caminho. Mesmo quando faço um lovesong, gosto de provocar.

Por isso acho importante zuar o estrume que ocupa o maior cargo de poder do nosso país, desde aquela época, quando foi lançado o Perfil. Eu queria também fazer isso a partir de uma contradição, mostrar que quem constrói esse país somos nós negros, pobre e favelados, mas na hora da arma na cabeça somos nós que tomamos tiros, somos presos e morremos. Por outro lado, quem ganha os louros da fama e tem a possibilidade de tirar a gente dessas condições é mais um cara branco de família “boa”, que tem ideias péssimas e retrógradas.

Liberdade e autonomia

A homofobia é outro aspecto muito presente neste discurso alinhado ao fascismo, visão que prega o autoritarismo e a busca por uma imagem ideal para os indivíduos que pertencem àquela sociedade. Neste sentido, atitudes consideradas homossexuais ou femininas são condenadas e perseguidas por não fazerem parte deste imaginário ideal do pensamento de natureza fascista, que ganhou apoio amplo do setor conservador no Brasil. Assim, buscando a provocação, em “Olho de Tigre”, Djonga faz uma analogia das atitudes destes indivíduos com um ato sexual de pessoas com outras orientações sexuais.

Tô olhando da janela, sociedade escrota
Caras que pagam de macho, com o pau boca
Bando de pau no cu
Bando de pau no cu
Nesse quesito serão premiados
Hors Concours

E quando se fala no machismo, não é necessário muitos argumentos para mostrar que o rap nacional ainda precisa melhorar muito. Muitos MCs ainda insistem em demonstrar uma visão de objetificação das mulheres. O próprio Djonga compreende que compôs e compõe músicas assim, como ocorrem em “Geminiano” do disco Heresia (2017):

Me prende, eu me sinto no filme Fuga de Alcatraz
A menos quando eu fico preso entre suas pernas
E odeia que eu fique preso em outras pernas
Minha profissão exige que eu analise pernas

Porém, o MC usa a “Olho de Tigre” para fazer sua autocrítica e se mostrar disposto a mudar seus posicionamentos.

Profissão nenhuma exige que analise pernas
Sustentar família exige que tu faça planos

Além de se questionar e propor o debate a partir de sua própria obra, Djonga usa a plataforma que adquiriu a partir de sua música para dar voz a temáticas e ideias que encorajam este tipo de discussão. Em O Menino Que Queria Ser Deus, a faixa “Estouro” com Karol Conká faz um paralelo da trajetória de sucesso de de um artista negro, o Djonga, com a sua própria trajetória de sucesso como mulher negra. Em Histórias da Minha Área, em “Deus Dará”, a Cristal fala da superação para se tornar artista e também tem dado oportunidade para muitas mulheres brilharem.

Ademais, o MC costuma em suas entrevistas sugerir que as pessoas ouçam não apenas a sua “irmã” Clara Lima, mas outras artistas de sua região, como Iza Sabino e o grupo Fenda (Paige Williams, Laura Sette, Iza Sabino, May e Thais Dj Kingdom). Falas e ações do próprio Djonga indicam que ele está disposto a ter este debate e a combater o machismo na música e fora dela também.

Morreu mais um no seu bairro, e você preocupado com a buceta branca
Gritando com a preta: “sou eu quem te banca”
Assustando ela, sou eu quem te espanca

Sou um cara que ama fazer música, fazer arte, assistir filmes, participar da direção dos meus clipes – errando e acertando às vezes. Acredito que por isso o trabalho tem dado resultado, tanto no quesito crítica quanto no quesito números. Cada vez mais tenho me sentido um cara mais maduro para lidar com as questões da vida, do meu próprio trabalho e sei para onde quero ir com minha música e com a minha voz. Só quero chegar num lugar de liberdade e autonomia, o resto não importa.

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