Embora os elementos constituintes do que chamamos de Hip-Hop existissem separadamente há algum tempo, o movimento cultural em si só nasce em meados da década de 1970 nas mãos das comunidades negras de Nova Iorque. Quatro elementos fundadores dão alicerce para a nossa cultura:
- 1) breakdancing, que é o estilo de dança urbana baseado em passes rápido e movimentos acrobáticos, por vezes semelhantes até à capoeira ou ao circo
- 2) DJ, conhecido ato de mixar e remixar músicas a partir de sonoridades já existentes, construindo uma musicalidade essencialmente antropofágica;
- 3) grafite, o famigerado desenho nos muros;
- e 4) o rap, aquele que vai matar nossa cultura.
A afirmação soa hiperbólica, e talvez seja, mas ela é, acima de tudo, um aviso e um medo. Em algum momento da nossa cultura nós começamos a supervalorizar os rappers a ponto de apagar a relevância dos breakdancers, dos grafiteiros e até mesmo dos DJs. A palavra dos MCs foi ganhando cada dia mais um lugar messiânico intocável, levando-nos ao ponto de ebulição de uma cultura tão embebida no ode a homens viciados em falar sobre “maconha & vadias” ou “nota$ & carro$ ltda” que a menor crítica ao som deles soa como uma ofensa à religião. De certa forma, os fãs de rap agem em pavorosos com discordâncias sobre suas crenças no mesmo grau que uma tia conservadora ao ver Jesus Cristo negro.
Mas qual o problema disso? Vários.
Um dos primeiros pontos é ver a deificação de valores sociais que são aqueles mesmos que servem para nos oprimir enquanto povo (proletário, racializado, contra a cisnormatividade): orai pelo dinheiro, orai pela “vagabunda” mamando na landrover, orai pela masculinidade transpirando da minha caneta pro estúdio, orai pela posse e pela propriedade, uma casa, um carrão e um iate, mas a verdade propriedade é a xota dela, maconha e vaidade. O rap, e em especial seu subgênero mais bem sucedido no nosso país, o trap, cada vez mais se afastam da criatividade lírica, da crônica urbana, do diário pro mundo do oprimido, dos pensamentos intrusivos intimistas que nos conectam enquanto humano.
O que fica em contrapartida?
Misoginia: metade das letras de trap, para ser bonzinho, tem como base lírica subjugar mulheres ao papel de mero apetrecho sexual, apetrecho este que é colecionável, afinal, vale não apenas quem você come, mas quantas e quais tipos. Alguns talvez teimem em argumentar que são apenas letras, diversão, não é para pensar muito. Mas não é o que vemos no dia a dia não é mesmo? Quantos trappers e rappers num todo são acusados de abuso sexual, violência doméstica, não pagar pensão, abandono parental etc? Para cada um desses, nós temos 10 mil manos dispostos a defendê-los com unhas e dentes. As estratégias são inúmeras: apela-se para uma distorção mesquinha de pautas sérias como raça e classe (“o cara é perseguido porque é preto, não podem ver um debaixo subindo”); apela-se para a índole da mulher (“quer a grana dela, tá fazendo isso porque é branca”); apela-se para a inveja (“não aceitam que o cara é o momento”). Só não apelam para o caráter do acusado e o problema endêmico que tem na indústria.
A misoginia, contudo, vem acompanhada da homofobia. Uma quantidade insalubre de perfis ataca os “haters” de suas divindades da caneta por meio de xingamentos homofóbicos. Não é necessário ir longe: Xamuel, independente da discussão sobre a qualidade da rima dele, é perseguido principalmente por se vestir de modo afeminado e afirmar que performance de gênero não precisa ser apenas aquilo que nos é imposto.
Tudo isso, contudo, é um problema financiado.
Como já dissemos na breve epifania sobre a genialidade pós-colonial de Racionais, a experiência negra é uma experiência constituída a partir do colonialismo. Somos fruto do rapto transatlântico e de uma construção de nação e modernidade inescapáveis enquanto histórico, mas com um futuro incerto, a depender do nosso esforço de construção. No coração de todos nós vive a dualidade do desejo de uma vida melhor, mais simples, sem a opressão do capitalismo e do racismo sistêmico, mas, sonhadores de um mundo idílico que não existe mais, recorremos ao sonho possível vendido pelo capitalismo: dinheiro e posse. Em algum momento, a industrialização do rap o raptou da nossa cultura e esvaziou dele boa parte daquilo que entendemos como reflexão crítica. O anseio moderno é substituído pela ânsia moderna de comprar. E no nosso mundo tudo é mercadoria, inclusive mulheres (especialmente as mulheres pretas).
O fã médio de rap não gosta de hip-hop. Ele ri dos B-Boys adicionados aos shows dos Racionais, pois acha que tira a seriedade do som. Ele nem liga pra grafite, se bobear prefere um muro branco. Ele valoriza o DJ que for brother do rapper favorito dele. Tudo que esses manos querem é ser o rapper que ganha milhões com um hit que toca em Itacoatiara o verão todo. Eles querem o carro, a grana e as mulheres. Mais do que isso. Eles querem a liberdade plena de ser um homem sem restrições no mundo descrito por James Brown em This is a man’s world. É por isso que seu MC favorito não pode ser criticado por repetir a mesma coisa inúmeras vezes em inúmeras músicas. É por isso que ele não pode ser criticado por tratar mulher como lixo, por usá-las, abusá-las e largá-las com uma criança no colo. É por isso que Kanye West não pode ser criticado por ser nazista, apoiar Trump e se juntar aos líderes dos movimentos supremacistas brancos dos Estados Unidos.
É por isso, inclusive, que os fãs de rap evitam consumir músicas de outros gêneros, que quando leem livros, veem filmes, fazem quaisquer outra coisa é sempre acessando artes que reforcem sua noção de um mundo de homens para homens. O problema é que quando um universo cultural fica ensimesmado, ele passa a ser tão auto referencial que a paródia vira sinceridade e ninguém mais percebe que a xerox da xerox está ilegível.
O Hip-Hop não morrerá de fato por consequência desse estado de desmonilização das pautas fundantes em prol da religião do dinheiro e da masculinidade. Todavia, é nítido que a infiltração da ideologia neoliberal na nossa cultura gera fissuras que praticamente cria dois tipos-ideais de rap: o nosso e o cooptado. Digo tipo-ideal porque na prática tudo isso se mistura e nem sempre o rapper tem culpa pela forma como seus fãs vão esvaziar o sentido de sua obra.
Na prática, como tudo nesta sociedade em que vivemos, o rap vive a tensão da disputa do Hip-Hop contra o neoliberalismo. Nessa briga os fãs de rap vem servindo os ideias opostos ao Hip-Hop. É por isso que na Flagra nós insistimos que vocês saiam de suas bolhas, leiam sobre a nossa história enquanto cultura, busquem as referências de seus MCs favoritos, busquem as músicas de outros países e aceitem que eles não são divindades, mas pessoas e pessoas que, se deixar, se cercam de “yes men” e se blindam de qualquer coisa.
É quando o homem está rodeado de manos que concordam com tudo que ele diz que os Drakes nascem e tomam a cultura e usam poder e dinheiro para abusar de garotas. É nesse momento que o rap vira um mundo de Neymares, onde reina a mediocridade e o machismo.
Não deixe o rap morrer, una-se ao Hip-Hop.