Flagra Essa Faixa: “Aquela Fé”, a melhor faixa de Don L?

Quando pensamos nos melhores MCs da atualidade, Don L é um dos nomes mais citados pelos rappers que você gosta. E, olhando para sua trajetória, não é difícil colocá-lo neste patamar dada a qualidade incontestável de seus discos solo somados a um incrível trabalho junto ao Carlos Gallo, no Costa a Costa.

Oriundo do nordeste, mais especificamente de Fortaleza, o MC rompeu as barreiras do rap, conquistando sucesso em um período onde quase que a totalidade de artistas do eixo RJ-SP eram os que chamavam atenção nesse meio musical.

Contudo, este sucesso, de acordo com o próprio MC, só foi possível com a sua mudança do nordeste para São Paulo capital, onde conseguiu se projetar comercialmente e musicalmente com a mixtape Caro Vapor/Vida e Veneno de Don L (2013). Isto o colocou mais perto de produtores e compositores e possibilitou certa projeção comercial que, infelizmente, naquela época, não poderia encontrar em sua terra natal.

Após quase 4 anos de espera por seu último disco, fomos premiados com um álbum digno de ser colocado entre os melhores que o rap nacional já nos proporcionou: Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3 (2017).

E em RPA3 é onde temos uma das melhores faixas do Don L, se não a melhor (pelo menos até aquele momentos de sua carreira), a “Aquela Fé”, que reúne Don com seu parceiro Nego Gallo, revivendo o Costa a Costa uma décadas após de seu último trabalho em conjunto..

Voltando ao início

“Aquela Fé” é a terceira faixa do RPA3, vindo logo após de “Fazia Sentido”, faixa na qual o MC rima sobre sua trajetória, refletindo sobre o seu início em 2007 e como o “jogo” mudou de lá até 2017.

Antes da Lavigne pensar em gadulizar uns MCs
Antes do Rincon ter um hit, e receber uma geladeira Rick
Antes dos ProEmishid ouvirem a minha mix
E sacarem um outro caminho
Eu tava nas’área
Antes de São Paulo inteira dizer “chapa”
Antes do Rio de Janeiro ter a minha marca
Eu já fazia o meu exercício

Trecho de “Fazia Sentido”

Isto é importante, porque em “Aquela Fé” o MC conta como recuperou a fé em sua música, sentimento que tinha de sobra em 2007, mas enquanto produzia o álbum, em meados de 2017, já não estava mais presente.

Algumas coisas levaram Don a uma certa desmotivação e a questionar suas próprias decisões. Como ele estabelece no início da faixa.

Minha casa tá uma crack house
As garrafas lembram fases do passado
Trazem frases de uma má fase
Como recados de náufragos
E eu desacreditado
Leio o e-mail de um fã em crise
Dizendo que ia correr igual a mim
Vendendo na esquina
Até o dia de mandar o mundo se foder
E ir embora dali

Don conclui o verso descrevendo sua angústia e é neste momento que se entende o estado de vulnerabilidade do MC, seus conflitos pessoais ficam escancarados, levando o ouvinte para a mesma mentalidade que o artista tinha naquele momento.

Ah, que saudade do que eu nunca mais vi
No fundo dos meus olhos
Será mesmo que eu me perdi
Pelos meus caminhos tortos?
Eu tô cheio desse vazio, poluído por corpos
Eu não sou daqui, minha alma é livre
E eu não me comporto
Eu quero minha fé de volta

Uma fé adormecida

No segundo verso, o MC de Fortaleza continua a questionar suas decisões e anseia pelo Don de 10 anos atrás, aquele que não entendia o mundo como o atual. Estes pensamentos decorrem do que ele observa e julga como comportamentos contraditórios e que, de certa maneira, mostram valores invertidos.

Tem dias que eu acho tudo inútil
Nossa melhor versão é puro ego, fútil
Uma luta contra o mundo
Pra fazer parte do mundo que ‘cê luta contra
O quanto é tudo (fake) vulto
Eu devo tá errado
Eu sou comunista e curto carros
Eu quero vencer e faço amizade com fracassados
Eu quero ser amado
Assumindo quando amo pra caralho

Seus valores são sua base, mas, diante destes questionamentos pessoais, o MC se encontra num beco sem saída, sem ter para onde ir. A ingenuidade o tornava inconsequente e a paixão pelo que fazia lhe movia. Hoje estes valores não são mais evidentes, a maturidade também lhe trouxe certa amargura diante do que agora ele conhece do mundo.

Eu não amo igrejas, quero amar a Cristo
E sempre fui assim, mas, agora, tipo
Eu sinto falta daquele moleque zica
Devoto da santa ignorância
Um moleque insano
Inspirado no irmão que me vendia droga
Eu vendia droga pra uns caras que vendiam drogas
E queria a rima no fone dos crias
Como se cria o vírus
Na empresa que vende a vacina

O clima deprimente se transforma em revolta nas denúncias das linhas que iniciam no terceiro verso. A força deste verso decorre do próprio sentimento criado na faixa até aqui. Don se questionou de diversas maneiras até este momento da música, mas aquilo que ele buscava resgatar estava ali a todo momento.

Porém, era necessário que o MC passasse por tudo que passou para que essas frases se tornassem tão impactantes. Seus ideais continuam vivos, o velho Don está presente, porém muito mais maduro e perspicaz.

E é real que incitam guerras pra vender as armas
Ocultam a verdade pra vender mentiras (dar as cartas)
Os ricos são os donos do Estado
Que ainda são os filhos dos senhores de escravos
Que dizimaram os índios
Compraram os revolucionários ou mataram
Em nome de um Cristo, como o de Bolsonaro (ao contrário)
Um que não tem amor, ao contrário
Tudo deturpado

Contra capa do disco físico que nunca foi produzido, publicada pelo Don em suas redes. Foto de Autumn Sonnichsen, Design de Filipi Filippo e Direção de André Merelonka

É incrível que essas rimas carreguem consigo um tom profético. Mesmo após o impeachment de Dilma, em 2016, ainda havia uma parte significativa da população que dificilmente poderia prever o que iria acontecer com Brasil nos anos seguintes, pelo menos não com a intensidade que se sucedeu, tornando esta sequência de frases extremamente atuais, significativas e demonstrando sua capacidade de tornar palavras imagens tão vívidas.

A visão de fé aqui é expressa mais do que apenas uma simples busca pelo sucesso, mas como algo que dá sentido na vida e força para vencer as guerras, internas e externas.

Ingenuidade minha, né?
Querer uma Roc-A-Fella no Brasil, olha minha fé
Meus irmãos não fecharam o secundário
Deixaram de ser réu primário e já eram pais
Ou tiveram que segurar um barraco e já era a paz
Um a um, ficaram pra trás
Eu segui a estrada
Como um sobrevivente de guerra
Ou de guerras
Eu quero aquela fé, sem miséria

Enxergando a partir da perspectiva do MC, não há como ele se contentar com o que já havia conquistado. Neste sentido, a mudança é necessária e aparece na faixa, não apenas na produção, mas no sentimento que ela traz.

Um velho amigo, a mesma fé

Temos um dos momentos mais mágicos que o rap nacional já havia proporcionado, uma nova parceria entre Don L e Nego Gallo. Isto resgata a fé que havia sido perdida, mostrando que na verdade ela se manifesta de uma maneira completamente diferente.

Nego Gallo não surge na faixa como uma simples participação. O entrosamento entre ele e Don L é uma das coisas que encontramos muito pouco na música. De tal forma, ambos se complementam de uma maneira extremamente intrigante, apesar de viverem fases  tão diferentes da vida e da música.

Uma frase muda o fim do filme

O nome do disco é Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3, uma homenagem a um dos cineastas brasileiros mais bem sucedidos no cinema mundial, um conterrâneo do Don com um olhar peculiar nos seus filmes.

Neste contexto, Gallo sintetiza toda a sua trajetória e de qualquer outra pessoa em uma única frase que indica que tudo poderia ser diferente. Afinal, quem nunca imaginou que as coisas poderiam ser diferentes se tivesse tomado outras decisões? Se tivesse ouvido ou não um conselho que lhe foi dado? Se tivesse recebido um sim ao invés de um não?

Sem tempo para elaborarmos uma resposta a estes questionamentos, Gallo nos entrega um dos versos mais profundos que poderíamos ouvir. Ele mostra uma fé que nunca se perdeu, que sempre esteve ali, mas que revela de maneiras diferentes. Tal qual Don L indica: uma fé que o persegue.

No trânsito pelo corredor, eu e minhas neuroses
Ninguém tá doando amor
E do que trouxe a paz, outra dose
Admitam, toda verdade absoluta é uma fraude
Embucha outro engodo
Enlouqueci, mas já era tarde
Não deixei terminar a frase, só deixei ir
Vaguei, paguei caro
Sem grana, acordei cedo
Às oito, no trampo, ainda lido com drogas
Nesse trampo do centro
Dividindo um café com um mendigo em trapos
Que canta versos que eu vivi noutro momento
Pra lembrar a fé que viu no camarim
Imagens que falam de mim, noutro tempo

Comparar Nego Gallo ao John Constantine é extremamente sutil. O personagem da DC combate os demônios sobrenaturais em um universo que os super-heróis não são o suficiente para o mesmo. Gallo também combate os demônios, mas aqueles que assombraram sua vida por um bom tempo, as drogas. Essa busca ultrapassa as barreiras da música, e o MC também busca contribuir ajudando dependentes químicos da sua comunidade.

O céu assiste às séries
Se é um filme, eu tô tipo o Constantine
Dedo médio em riste
Uma frase muda o fim do filme
À frente, a morte
Não ser uma fraude
Abutres aplaudem sob o sol forte
Exalta a humildade só
A vida manda ser forte

Com este histórico pautado em uma causa social, Gallo buscou seu próprio caminho e respostas para suas angústias, sem, por exemplo, almejar uma carreira de destaque no mainstream. Este sucesso viria a se materializar, de certa forma, mais tarde com o seu disco Veterano (2019).

Uma frase muda o fim do filme

A repetição de “uma frase muda o fim do filme” logo após este verso do Constantino e antes de Don finalizar a faixa imprimem a ideia que tudo poderia ser diferente. Porém, esse drama não é a resposta ao questionamento, a fé que faltava se esconde em um lugar muito mais profundo.

Uma frase muda o fim do filme
São tantos caminhos
Tantos desvios
Depois de perder o sentido
Uma frase muda o fim do filme, uhh
Uma frase muda o fim do filme
Mas é interno o maior labirinto
‘Cê tá ligado bem, amigo
De volta ao motivo
Não
De volta ao motivo do motivo
Mil voltas no mundo
Em buscas e buscas
Depois, mais mil voltas em círculos
Um circo, num cerco de insanidade (uhh)
A fim de recuperar o que ‘cê já tinha no início

A fé que ele se refere está sempre com você, independente dos caminhos e o labirinto que o destino possa proporcionar, a motivação original que é responsável por te moldar estará sempre lá. É a fé em si mesmo e nos ideais que o seu contexto moldou.

Esquecer essa fé significaria o fim do Don L, pelo menos como aquele MC que conhecemos e aprendemos a admirar. Mas esse momento de hesitação, de desmotivação, é necessário para que ele e o ouvinte  possibilitem uma reconexão com seu início pessoal. Neste sentido, a presença do Gallo na faixa é fundamental, pois traz uma espécie de solução às angústias do Don e lança luz para uma nova perspectiva de encarar todos estes questionamentos tão íntimos.

Por isso, quando afirmo que esta é a melhor faixa do Don, me refiro principalmente a uma música que vai durar por gerações, o blueprint que irá inspirar muitos artistas durante anos.

“Aquela Fé” e, consequentemente, RPA3 conquistam isso e reafirmam Don L como um dos melhores compositores e intérpretes do rap nacional.

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