Das Ruas aos Ringues: Onde o Box e o Rap se encontram

Funk Buia fala sobre a sua relação com a nobre arte e de que forma o esporte de combate se relaciona com o rap

O boxe e o rap têm muito em comum. São duas artes de combate marginalizadas que servem de ferramenta social de transformação, sobretudo, da vida de seres humanos mais pobres e dos pretos, que são os que trazem as suas histórias fundamentadas na experiência de viver numa sociedade que se forjou no colonialismo e se estruturou a partir das relações de raça e classe. 

Foto: Daisy Serena

Vivenciando o cotidiano do treino de boxe e da cultura Hip Hop, é possível notar que a ética e a essência de ambos se baseiam no respeito, na humildade, na disciplina e no desenvolvimento individual para o fortalecimento do coletivo. O ritmo e a inteligência emocional são elementos fundamentais para lidar com o oponente e desenvolver uma execução assertiva. É o seu propósito, a capacidade de se manter inconformado e comportamento que irão fazer da sua luta algo sublime.

Foto: Daisy Serena

Tenho um pai que lutou boxe dos 16 aos 20 anos de idade em Salvador, na Bahia. Ele treinou no bairro onde fomos criados, em Itapuã e no centro olímpico com os mestres Zé Troncudo e Dórea. Parou porque a minha avó, Dona Didila, era Testemunha de Jeová e o proibiu de estar em combate.  Entre tempos de pausa, onde não víamos equipamentos de boxe em casa, e outros de ação, cresci num ambiente onde constantemente se encontrava saco de pancada, luvas e manoplas de foco vermelhas no chão da laje.

Ao longo do ano de 2024, comecei a treinar na academia de Boxe Autônomo, em São Paulo, e nas aulas das quarta-feiras à noite, com o treinador Breno Macedo, experienciei as suas aulas sempre acompanhadas de música, sobretudo de rap. Nesse contexto, como uma pessoa que trabalha e vivencia as duas artes, comecei a me sentir instigada a compreender a relação entre um e outro.

Os dois têm uma força na comunidade lá onde eu moro, principalmente com a luta, porque eu acho que as pessoas conseguem ir além, ter a capacidade de centralizar o que pensa e enxerga no espelho a transformação na sua matéria.

Funk Buia

A vida, que sempre nos conduz por caminhos prósperos e de realização, fez com que eu encontrasse o Funk Buia, artista que eu já escutava, principalmente através das músicas do grupo Z’África Brasil, no camarim do show de lançamento do álbum “Pedra de Selva” do Curumin, o qual eu estava trabalhando como assessora de imprensa. Avistei ele colando o adesivo do TEAM PANCADA, grupo de muay thay e boxe do Taboão da Serra que eu quase fui treinar na época que morava no Grajaú e pela distância, não fui.

Foto: Daisy Serena

Conversamos e logo o Buia começou a me mostrar músicas do seu novo álbum, falou que conhecia o treinador Breno e criamos ali um vínculo de forma muito fluida e genuína. O convidei para trocar uma ideia, fui até o Matilha Cultural e pedi para ele contar um pouco sobre a forma que o boxe entrou na sua vida e sua percepção sobre onde o boxe e o rap se encontram.

ENTREVISTA

Onde o rap e o boxe se encontram?

    Buia: O rap, O boxe? Eu acho que a luta, as dificuldades que tem para uma apresentação e a preparação que tem antes da do espetáculo, antes do do do front, né? E o o no o não gastar energia, o poupar, saber sair na hora certa. Eu acho que tem tudo a ver. Eu acho que é o link maior que tem, não só com o rap, com a música, como com a vida. Em toda a luta. Quando você faz o parâmetro do sair de casa, do se preparar. Do treinar para se apresentar. Do querer almejar algo maior. Ser campeão? Ser. Ser um dos melhores. Estar nas melhores. Eu acho que tem tudo a ver. Tá. Acho que tá lado a lado um com o outro ali. E toda vez que eu penso em luta, eu penso em nocaute. Chegar em ser o melhor. Destruir tudo. E a música? Eu penso a mesma coisa toda vez que eu vou me apresentar. Eu quero arrebentar. Fazer o povo cantar comigo, entendeu? É aí que eu vejo esse parâmetro. Tá muito junto. E não gastar energia, tentar dar o golpe certo, né? As músicas certas fazer. Fazer o o jogo vir pro meu lado. Não eu jogar o jogo que está sendo lá, eu me impor na parada. Eu acho que tem tudo a ver. A música, o rap, principalmente. Principalmente o rap, por ser uma parada marginalizada, né? E o boxe sempre foi rua pra caralho. Então não tem como. Tem tudo a ver. É isso.

    Foto: Daisy Serena

    Como foi que você começou no rap e no boxe?

      Buia: Saí do Embu das Artes, morei em Santa Teresa até os sete anos e depois fui pro Taboão da Serra. O primeiro rap que eu escrevi, que eu me envolvi foi em 1990 ou 1991. Me apresentei, estava com 12 anos. Foi num grupo chamado Justiceiro do Rap. No boxe, eu já tava velho, tava com 25 anos quando comecei. Tava começando a pegar uns pesinhos na academia e vi os caras lá saindo na mão. Me envolvi e quem me injetou no na luta foi o Johnny, que é o meu mestre até hoje. Ele sabia que eu ia pra estádio, né? A história que eu tava falando – antes de começar a gravar a entrevista – gostava do som do combate e ele perguntou pra mim se eu tinha coragem de sair na mão com alguma pessoa no ringue. Eu pensei “igual eu, do meu peso”, falei “oxe, demorou só treinar uns dias, filho, vamos pra cima”. Aí eu treinei uns seis, sete meses, fiz minha primeira luta de Muay Thai. Então, o boxe faz parte de tudo, né? Eu acho que é a base de todas as lutas porque se você  precisa saber ter o arranque, a saída, guarda, se esquivar. Boxe é a base de tudo. Minha primeira luta foi num evento que foi até o Mestre Martelo da Academia Predador que fez, lá no Embu. Essa luta eu não saí vitorioso, mas eu saí muito aplaudido. Então, eu acho que foi essa minha maior vitória, né? Que nem na música, às vezes você não é o grupo principal a se apresentar, mas o show que você fez, ninguém esquece. Aí eu conheci o Luiz Azeredo, que lutou no Pride, quem me apresentou ele foi o Adriano Duarte. Ele me levou para conhecer o Azeredo. Aí eu fui na Chute Boxe, conheci o Diego Lima, conheci o Shogun, conheci o Wanderlei Mito. Mas a primeira vez que eu subi no ringue, na verdade, foi no evento da Samurai. Eu fui lá pra cantar. Tipo, eu falei “eu to na casa deles, entendeu? Então, na próxima vez que eu subir no ringue não vai ser pra cantar mais, não vai ser pra sair na mão com alguém.” Aí foi daí em diante que eu comecei a lutar mesmo.

      Foto: Daisy Serena

      Hoje montei meu time, o Team Pancada. Depois de uns anos, mesmo lutando pela Boxe, saí de lá, mas fazia uns treinos aleatórios com Lima. Aí eu me envolvi com o Flávio lá no Taboão. Eles montaram o time Gângster, que era o Rodrigo, Benedito Capeta, o Majin Boo, Marcos e o Flávio. Aí eu fui pra quebrada porque a gente tinha um time bom lá e eu saia na mão. Mó legal, hein? Briguei pra porra nesse time aí da quebrada. Fiquei famoso lá, hein? (risos)

      Foto: Daisy Serena

      E, Buia, como a luta se relaciona com o dia a dia?

        Buia: O ringue, ó. Tem um bagulho que ele tá falando da vida. Se você não se preparar, às vezes você pega uma luta que poderia ser muito fácil, mas ela se torna uma luta de três, quatro ou cinco rounds, porque você não tá focado no que você foi pra fazer. É igual a música, se você pega um show bagaça, vai ganhar um dinheiro bom. Se você não tiver focado ali, você vai errar, você vai esquecer. Você vai perder, vai perder a oportunidade. E nessa  você deixou de fazer o que? O seu portfólio, que o cara já tá ali, ele já tá vendo tudo, vai falar É isso que eu quero? A energia que você tá vendendo falhou e já era. Na luta, essa é a hora onde entra o soco. Falhou, Já era. É um murro inválido que você tá dando. É um soco que você tá jogando no vazio. É a oportunidade que você tem pra nocautear e você deixou virar uma luta dura. E muitas das vezes você nem ganhou, mas sua vontade te trouxe o troféu, entendeu? Muitas das vezes você foi lá, se lascou todinho. Não foi um dia bom, mas você se dedicou pra que o show fosse bom. Lutou pra isso. A mesma coisa. Não tem como. E eu vejo muito junto assim. O que a gente tá falando de luta? A música, o rap, o boxe, o Thay? O confronto, tá ligado? Se preparar pra ser o melhor. 

        E como que você vê, assim, socialmente, a possibilidade de transformação do boxe e do rap, sendo que são duas atividades, uma esportiva e outra cultural, mas que são ambas marginalizadas?

          Buia: E você acabou de dar uma deixa já:  as duas são o quê? Marginalizadas? Então aí já começa a luta das duas, né? Projeto. Projeto. A gente tem um projeto lá na comunidade que eu pegava o campo pra fazer. Além de lutar contra as coisas que não é pra ter. No momento que a gente convive com o tráfico, convive com o crime 24/48 e quem falar que não, em São Paulo, tá mentindo. “Uhum, por favor, esse horário não precisa ninguém ficar aqui. Esse horário ninguém cola aqui”. Aí tem as pessoas que querem usar o espaço pra ficar correndo e atrapalhar o treino. É uma luta da porra. O rap, as oficinas, os workshop, a gente tem que entrar na mente do moleque pra ele retratar aquilo que ele é e passar pro papel e na luta colocar pra fora. A sagacidade que ele tem e filtrar isso aí. Eu acho que a luta traz uma disciplina de comportamento de você evitar a covardia. Porque quando você aprende a lutar e treinar, você não briga mais, você evita a briga. No rap, a inteligência que você usa do conteúdo de saber quem você é. As histórias que eu aprendi aqui não tive conteúdo igual na escola, entendeu? Então te dá uma base de você saber como agir, se comportar com as palavras do seu posicionamento. É mais psicológico do que o próprio físico, que vem da luta de se misturar. Os dois têm uma força na comunidade lá onde eu moro, principalmente com a luta, porque eu acho que as pessoas conseguem ir além, ter a capacidade de centralizar o que pensa e enxerga no espelho a transformação na sua matéria. E esses projetos que rola nas quebradas? O rap, agora, com a pancada que veio o funk, deixou de ter a vitrine que tinha, era muita porta aberta. Mas por ser uma luta, eu acho que tem muita gente fazendo ainda. Não que eu ache, eu vejo muita gente fazendo e não vai parar porque é enraizado, porque todo mundo já veio nessa margem aí. A gente já vem lutando. Já é uma dificuldade da porra pra nós ser nós dentro dessa sociedade. E as duas artes, se fossem menos discriminadas, eu acho que a gente conseguiria atingir mais pessoas do bem e saudáveis, entendeu? Tanto forte mentalmente como preparada fisicamente. Se a gente tá numa zona de conforto, a gente se acomoda. E aí que deixa o ser humano um bosta, achando que é confiante e quando precisar dele, você não vai ter. Você deixa de criar o ser humano forte de moringa e de corpo. Deixa se distanciar a cabeça do corpo. Aí que nós se perde. Se a gente tá linkado com os dois, igual o rap, com a música, com a história, com a coisa, o estudo e tal, depende da linhagem de rap também que você vem, porque né, tem muito rap aqui que só por Deus. E você fecha com a luta. Você não desperdiça golpe.

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