Sou um cara que acredita que a arte tem o papel de provocar.
Sensação, Sensacional: a ascensão de um ícone
Talvez Djonga tenha tido a maior ascensão dos artistas de rap nos últimos anos. O MC mineiro também tem trabalhado como ninguém: além das inúmeras colaborações e projetos em conjunto com outros artistas, nos últimos 4 anos ele tem lançado discos consistentemente todo dia 13 de março. Heresia (2017), O Menino Que Queria Ser Deus (2018), Ladrão (2019) e Histórias da Minha Área (2020) formam um discografia de dar inveja a muitos artistas.
E dentre as incontáveis músicas e versos de Gustavo, uma se tornou um verdadeiro hino da juventude negra brasileira: a faixa “Olho de Tigre”. Lançada no projeto Perfil da Pineapple e produzida por Malive e Slim, é a canção mais famosa do MC mineiro. Assim, há exatamente 3 anos, Djonga lançava uma das faixas mais icônicas e conhecidas dos ouvintes de rap nacional dos últimos anos.
Muito mais do que a memorável e importante frase “fogo nos racistas”, que agora ecoa como uma lema necessário à juventude negra brasileira, a letra dessa música chama atenção para inúmeras situações que não estão apenas relacionadas ao racismo, mas também ao fascismo e ao machismo no Brasil contemporâneo.
“Olho de Tigre” é um belo exemplo das características que sobressaem nas composições do Djonga, um artista que é carismático não só pela habilidade de produzir rimas juntando informações e referências de uma maneira única, mas também por entregar muitas dessas linhas com uma fúria que pertence a uma juventude que cresce carente de oportunidades e que precisa ser ouvida. A faixa faz uma crítica aguçada à sociedade brasileira e engloba temas de uma forma particular e profunda, sem perder o humor característico do MC mineiro.
Comentário nas redes sociais: Mas vocês pregam paz e falam fogo nos racistas, vocês acham certo?
Djonga: Sim – Vídeo do Quebrando Tabu
As músicas de Djonga, além de encantarem pela qualidade técnica ou pelo ritmo, também são muito informativas. O mineiro é muito abrangente nos tópicos e temáticas, tendo músicas para agradar diversos gostos. E, para além disso, muitos dos assuntos são tratados com certa profundidade e consistência, tais como ocorreram com o debate racial, fascismo e machismo em “Olho de Tigre”.
Te informando Jornal Nacional
Talvez por isso que me chamam de sensacional
O adjetivo sensacional é muito propício para descrever o que o MC tem feito, devido às sensações que suas canções proporcionam. Algo estampado no refrão:
Sensação, sensacional
Sensação, sensacional
Sensação, sensacional
Firma, firma, firma
Fogo nos racista
Sensacional
E sensação, sensacional
Sensação, sensacional
Firma, firma, firma
Fogo nos racista
A frase “fogo nos racistas” sumariza não só a faixa, mas também a energia com que Djonga entrega suas rimas em suas músicas, contendo toda a dor, revolta e esperança que o significado dessa frase carrega. É um belo slogan para uma discografia que tomou o rap game, que era um sonho distante para o próprio Djonga, mas se materializou de forma belíssima através da sinceridade das histórias construídas pelo mineiro.
Não sei o que é rap game
Deve ser mais um videogame que eu não pude ter
E o maior registro das conquistas e relevância do Djonga está nas capas de seu disco, que não apenas contam histórias por si só, mas também lançam um olhar particular para toda a complexidade de um jovem negro periférico sonhador vivendo em uma sociedade que lhe nega oportunidades e, apesar disso tudo, consegue através da arte ter uma voz capaz que provoca qualquer um a questionar a si próprio e ao seu redor.
Seu time cometeu falta grave
Nós resolve no tapa
E meu disco é a prova
Que se pode julgar o livro pela capa
Estamos de olho: o debate racial
Quando se fala do racismo, é muito comum, até mesmo entre negros, que este debate fique muito na esfera das injúrias raciais. Porém, como temos visto nos últimos anos, essa discussão é muito mais ampla e cheia de particularidades que muita vezes estão na nossa frente, mas acabamos ignorando. Djonga, em muitas de suas músicas, lança um olhar distinto que permite uma discussão que vai além do aspecto mais superficial do debate racial.
Em particular, “Olho de Tigre” é o exemplo perfeito de como o MC mineiro consegue fazer com que o ouvinte reflita sobre o racismo, não só numa perspectiva de revolta, mas como algo presente nas mais diferentes situações e contextos da cultura brasileira e mundial. Para além dos paralelos que iniciam a faixa, a faixa nos expõe a situações e expressões que revelam a inversão de valores que esconde comportamentos e/ou mentalidades racistas.
Um boy branco, me pediu “high five”
Confundi com um “Heil, Hitler”
Quem tem minha cor é ladrão
Quem tem a cor de Eric Clapton é cleptomaníaco
De maneira sutil, o MC mineiro usa sua música para demonstrar como figuras públicas que têm comportamentos racistas ou realizam falas preconceituosas são perdoadas pelo público com um mero pedido de desculpas. O músico Eric Clapton, que não foi citado na faixa à toa, fez declarações racistas durante um festival em Birmingham, Inglaterra, em 1976, mas o caso não parece ter afetado a carreira do cantor, que alegou que o problema estava relacionado ao consumo de drogas.
Outra referência citada, Danilo Gentili, já realizou falas e “piadas” racistas várias vezes ao longo de sua carreira. Uma delas causou, momentaneamente, a suspensão da conta do Facebook do comediante. No entanto, de acordo com ele, sua publicação teria sido apenas uma brincadeira.
Tô crítico igual cartoon do Henfil
Com esses Danilo Gentili eu não vou ser gentil
Contudo, o debate que a faixa do Djonga propõe vai além de exemplos de falas e atitudes racistas. Muitos trechos das faixas do MC remetem a questões que exigem certo conhecimento da cultura negra em geral, principalmente relacionadas ao protesto histórico do povo negro e a sua reafirmação.
Não queremos ser o futuro, somos o presente
Na chamada a professora diz “Pantera Negra”
Eu respondo: presente
A mensagem dessas linhas é forte, pois interliga o passado, com a referência aos Panteras Negras, o presente, na voz de Djonga, que representa a geração atual, e o futuro, se referindo aos negros e negras que ainda não nasceram.
É muito provável que as gerações anteriores a essa tenham ouvido de seus pais que no futuro as coisas seriam melhores, ou pelo menos devem ter pensado em algo similar. Porém, a espera se tornou muito longa e o racismo, ao invés de ser combatido, continuou a compor as estruturas sociais ao ponto de se tornar um problema ainda maior e mais complexo do que era anos atrás.
Os protestos da morte de George Floyd nos Estados Unidos e no Brasil pela morte do menino João Pedro no Rio de Janeiro ocorridos nos últimos meses são exemplos de movimentos sociais e de protestos que foram liderados, principalmente, pela juventude que se encontra cansada de ver jovens negros sendo mortos por conta da violência policial.
Estes casos, e muitos outros que vem à tona nas redes sociais e notícias, revelam que o racismo ainda está muito presente em nossas estruturas sociais e está longe de desaparecer por completo das sociedades contemporâneas, sobretudo das que guardam fortes resquícios das estruturas coloniais escravistas como o Brasil e os EUA.
Nesse sentido, a faixa “Olho de Tigre” consegue captar de forma precisa a realidade do racismo no passado, no presente e, infelizmente, no futuro.
Morreu mais um no seu bairro, e você preocupado com a buceta branca
Essa linha, além de chamar atenção do ouvinte para o extermínio da juventude negra, também reflete o fetiche dos negros com a mulher branca. Esse imaginário criado socialmente já havia sido discutido pelo próprio Djonga, devido a repercussão da faixa “#TAMOTRASANDODEFATO” com Lívia Cruz, que viria a ter atitudes racistas em um de seus vídeos.
Além de trazer estes assuntos na música, em entrevistas e nas redes sociais, é comum, como visto no início do texto, que o MC mineiro se posicione sobre diversos assuntos, principalmente os relacionados ao debate racial, e que use estes espaços para fazer uma autocrítica, mostrando que tem estudado e refletido sobre o que rima em suas músicas.
Sou reflexo da sociedade, reflexo virou matéria
Meio que tá no ar: um alerta ao fascismo e ao machismo
Para quem ainda não percebeu, nos últimos anos tivemos um aumento de simbologias e ideias abertamente fascistas no contexto brasileiro, intensificadas, principalmente, por figuras públicas do governo brasileiro. Junto a estas pessoas, uma parcela da sociedade tem concordado, tanto de forma consciente quanto inconsciente, com esse tipo de posicionamento. Três anos atrás, Djonga já evidenciava estas questões em “Olho de Tigre”:
Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro
E pra salvar o país, Cristo é um ex-militar
Que acha que mulher reunida é puteiro
Machista tá osso, e até eu que sou cachorro não consigo mais roer
E esse castelo vai ruir, e eles são fracos vão chorar até se não doer
O principal alvo do MC é o ex-deputado e agora presidente do país, Jair Messias Bolsonaro. As linhas mostram as contradições das falas e atitudes do Presidente, que, junto com sua própria família e uma legião de apoiadores, distorcem o discurso cristão e apresentam um conteúdo inflamado e autoritário. E não precisa ser um devoto dessa religião para identificar esses problemas, tendo em vista que a base dos argumentos desta parcela da população está pautada na mentira e no senso comum.
Além do mais, Djonga reforça mais um aspecto presente no imaginário popular: a personificação da salvação na figura dos militares. Um estudo mostra que 45% dos brasileiros acima de 16 anos consideram as Forças Armadas como a instituição mais confiável no país. Essa imagem, desde a metade do século XX, atribui à instituição um caráter “reformador” e “idôneo”, que se diferencia da sociedade civil. Características associadas à figura do presidente por parte dos seus apoiadores devido ao seu passado militar. São esses os pontos que auxiliaram a chegada do golpe militar em 1964, e, embora a eleição de Bolsonaro fosse apenas uma ameaça na época em que a letra foi escrita, o rapper já imaginava o caminho que tomaríamos.
A homofobia é outro aspecto muito presente neste discurso alinhado ao fascismo, visão que prega o autoritarismo e a busca por uma imagem ideal para os indivíduos que pertencem àquela sociedade. Neste sentido, atitudes consideradas homossexuais ou femininas são condenadas e perseguidas por não fazerem parte deste imaginário ideal do pensamento de natureza fascista, que ganhou apoio amplo do setor conservador no Brasil. Assim, buscando a provocação, Djonga faz uma analogia das atitudes destes indivíduos com um ato sexual de pessoas com outras orientações sexuais.
Tô olhando da janela, sociedade escrota
Caras que pagam de macho, com o pau boca
Bando de pau no cu
Bando de pau no cu
Nesse quesito serão premiados
Hors Concours
Portanto, na ideia que Djonga busca passar aos ouvintes, é que este pensamento fascista está incorporado no discurso dos governantes e muitas pessoas que concordam com eles.
Olha eu olhando pros fascista
Igual Floyd olha pro McGregor
Se num entendeu o que eu tô falando
Eu devo tá falando grego, óh
Embora o fascismo, e a forma como ele vem se apresentando no cenário político, não seja um questão de simples compreensão, esta faixa alerta que o problema é muito maior do que se imagina. Sendo este um problema que tem refletido diretamente na sociedade em que vivemos.
E quando se fala no machismo, não é necessário muitos argumentos para mostrar que o rap nacional ainda precisa melhorar muito. Como já comentamos quando falamos de “LaLá” da Karol Conká, as mulheres e artistas LGBTQ+ ainda são invisibilizados. E, para além disso, os MCs ainda insistem em demonstrar uma visão de objetificação das mulheres. O próprio Djonga compreende que compôs e compõe músicas assim, como ocorrem em “Geminiano” do disco Heresia (2017):
Me prende, eu me sinto no filme Fuga de Alcatraz
A menos quando eu fico preso entre suas pernas
E odeia que eu fique preso em outras pernas
Minha profissão exige que eu analise pernas
Porém, o MC usa a “Olho de Tigre” para fazer sua autocrítica e se mostrar disposto a mudar seus posicionamentos.
Profissão nenhuma exige que analise pernas
Sustentar família exige que tu faça planos
Além de se questionar e propor o debate a partir de sua própria obra, Djonga usa a plataforma que adquiriu a partir de sua música para dar voz a temáticas e ideias que encorajam este tipo de discussão. Em O Menino Que Queria Ser Deus, a faixa “Estouro” com Karol Conká faz um paralelo da trajetória de sucesso de de um artista negro, o Djonga, com a sua própria trajetória de sucesso como mulher negra. Em Histórias da Minha Área, em “Deus Dará”, a Cristal fala da superação para se tornar artista e também tem dado oportunidade para muitas mulheres brilharem.
Ademais, o MC costuma em suas entrevistas sugerir que as pessoas ouçam não apenas a sua “irmã” Clara Lima, mas outras artistas de sua região, como Iza Sabino e o grupo Fenda (Paige Williams, Laura Sette, Iza Sabino, May e Thais Dj Kingdom). Falas e ações do próprio Djonga indicam que ele está disposto a ter este debate e a combater o machismo na música e fora dela também.
Morreu mais um no seu bairro, e você preocupado com a buceta branca
Gritando com a preta: “sou eu quem te banca”
Assustando ela, sou eu quem te espanca
Conversando com Djonga
No dia 25 de Julho, a faixa “Olho de Tigre”, lançada no quadro Perfil da Pineapple, completa 3 anos e provavelmente é a faixa mais conhecida e adorada pelos fãs. Ela traz a emblemática frase: “fogo nos racistas”. Você esperava que essa faixa fosse se tornar tão popular por todo o país? E por que você acha que ela alcançou todo esse sucesso?
[Djonga] Quando eu escrevi ela [“Olho de Tigre”] pensei muito no poder que eu tinha por estar naquele espaço, um canal [PineappleStormTV] com muita visualização e no alcance que aquilo ali iria gerar. Pensei em fazer uma parada que ao mesmo tempo fosse uma tiração de onda, mas que abordasse os temas que eu abordo desde sempre, tá ligado? Para mim são temas relevantes e importantes pro momento que a gente vive. Quando eu fiz aquele refrão, eu senti que aquilo era uma parada que tinha que ser falada daquela forma por ser algo muito maior que eu.
E o sucesso é devido ao que significa [fogo nos racista] no contexto que a gente vive, sacou? Coisas que são muito reais e diretas batem no coração das pessoas. E, além disso também é verdadeiro e direto, está em tudo que a gente vive e tem vivido nos últimos anos. Tantas mortes de criança e de jovens negros que vem acontecendo há muito tempo, não só agora. Aquele grito “fogo nos racistas” vem de um acúmulo de frustração, tristeza e raiva por tudo que o racismo causa e a consciência que isso traz. É por isso que aquele grito impacta tanto até hoje.
Como se deu o processo de composição desta faixa? Quais as principais referências e ideias por trás da criação destas linhas? E por que da escolha do título “Olho de Tigre”?
[Djonga] Eu tava no Rio na época, tinha ido fazer um show, em que fiquei cerca de uma semana no Rio direto fazendo show quase todos os dias. Paulo me mandou uma mensagem: “vei, grava o Perfil, vamo gravar o Perfil e tem um beat aqui que eu acho que é a sua cara”. O beat era aquele Malive, do “Olho de Tigre”. Pedi para ajustar o beat ao tempo que eu queria cantar, passamos um tempo fazendo isso, só ajustando ali a velocidade, o BPM e alguns detalhezinhos da produção. Minha inspiração foi muito direta, porque apesar de eu tá falando da minha carreira, eu estou falando de uma parada que eu vivo e que eu sofro na pele todo o dia, então não é uma parada que eu forço tanto para fazer e pensar. Eu tava deitado e em cinco minutos tive a ideia, fui só articulando as palavras.
Eu tinha acabado de lançar “Atletas do Ano (Remix)”, que tinha a frase “Djonga sensação, Djonga sensacional”, e como eu gosto de fazer referência a mim mesmo nas minhas letras pensei em trazer isso para o refrão, mas completar com algo impactante. No dia o FBC estava comigo, junto com a equipe toda. Cada um no seu quarto escreveu seu Perfil, ele escreveu o dele no mesmo dia que o meu. Quando terminamos de escreveu, um mostrou para o outro e cada um gostou muito do Perfil do outro.
O nome da faixa vem pela frase “eye of tiger”, que faz referência a música “Eye of the Tiger”, do Survivor, que é trilha sonora do filme Rocky III. O olho de tigre eu pensei no sentido de ver longe, além, de uma visão ampla mesmo. Porque a faixa não fala só sobre racismo, mas sobre várias questões que estou enxergando na minha vida naquele momento.
Mesmo sendo lançada em 2017, a faixa ainda continua muito atual, não só pela temática do racismo, mas também por debater questões relacionada ao fascismo e ao machismo. Inclusive, ela tem um tom quase que profético quando faz referência ao atual presidente do país – “E pra salvar o país, Cristo é um ex-militar/Que acha que mulher reunida é puteiro”. Pensando na quantidade de pessoas que sua música atinge, qual a importância de debater estes assuntos a partir de sua arte?
[Djonga] Sou um cara que acredita que a arte tem o papel de provocar. “Olho de Tigre” é uma das minhas músicas mais provocadoras, embora acredite que tenha algumas mais provocadoras do que ela. Quando falo de provocar é no sentido de provocar reflexão. Independente da forma de arte que estivesse fazendo, eu iria por esse caminho. Mesmo quando faço um lovesong, gosto de provocar.
Por isso acho importante zuar o estrume que ocupa o maior cargo de poder do nosso país, desde aquela época, quando foi lançado o Perfil. Eu queria também fazer isso a partir de uma contradição, mostrar que quem constrói esse país somos nós negros, pobre e favelados, mas na hora da arma na cabeça somos nós que tomamos tiros, somos presos e morremos. Por outro lado, quem ganha os louros da fama e tem a possibilidade de tirar a gente dessas condições é mais um cara branco de família “boa”, que tem ideias péssimas e retrógradas.
Infelizmente, como comentamos, essa “Olho de Tigre” se mantém atual e tem tudo para se manter assim nos próximos anos. Algo parecido acontece com as músicas do Racionais MCs, uma de suas principais referências. A obra do grupo paulista a cada década que passa se torna mais impactante devido a esta característica de se manter atual diante da realidade que vivemos. Para você, qual a importância dessas obras que atravessam gerações? Seria esse um sinal de que não há mudanças?
[Djonga] De alguma forma sim, é um sinal de que as mudanças são difíceis, não que elas não existem. As mudanças acontecem muito devagar para o lado de cá, apesar de terem algumas coisas que possibilitem, hoje em dia, pessoas como eu ter mais acesso de alguma forma. Às vezes damos um passo para frente e três para trás. Essas mudanças acontecem, poderiam ser mais significativas para acontecer um processo real de colocar o poder nas nossas mãos ou de, pelo menos, nos permitir dar uma respirada, trazer um alívio para nossa mente, que nos permitisse dizer que está tudo bem. Ainda falta, é por isso que muitas dessas obras atravessam gerações.
A arte, de maneira geral, mesmo falando de coisas tão sérias, quando é de qualidade, que tem relevância para uma geração, que seja uma relevância social real, mesmo que seja falando de amor, quando é assim acaba atravessando gerações porque marca.
Também no decorrer destes três anos tivemos o lançamentos de 4 discos tão impactantes quanto a própria faixa “Olho de Tigre”, todos entregues no dia 13 de março em um intervalo exato de 1 ano entre cada um deles. Por que manter esse cronograma tão apertado? E quais os desafios para manter a qualidade em cada um destes discos?
[Djonga] Eu não sei se o cronograma é apertado, cada um tem seu tempo. Esse é meu tempo de fazer arte, nesse momento tem sido. Talvez ano que vem não seja, não sei, mas esse é meu tempo, minha necessidade de dizer as coisas e de me comunicar com os meus. Tudo isso tá de alguma forma pronto na minha cabeça a muito tempo. A cada ano eu só descubro como eu vou dizer essas coisas e coloco outras que tenho aprendido na caminha. Nós vivemos 10 anos em 1 ano nessa caminha sinistra que nós temos.
Sem ser clichê, mas para manter a qualidade é ter carinho com a sua arte. Ter amor com sua arte, com você mesmo, com a sua família e com o coração das pessoas que irão ouvir, principalmente as crianças. Fazendo com carinho a qualidade vem. O talento também é importante.
Lá fora, artistas como Kendrick Lamar e J Cole, referências no rap mundialmente, são cobrados por serem pouco ativos nas redes sociais, ou seja, por não se posicionarem sobre determinados assuntos, mesmo tendo uma discografia que discute a questão racial profundamente. Você, pelo contrário, costuma usar as redes sociais e entrevistas, nas mais diversas mídias, para reforçar as mesmas mensagens que você passa em sua obra. Qual a importância deste papel? E como você lida com essa responsabilidade?
[Djonga] Brasil e Estados Unidos estão em patamares completamente diferentes na discussão racial, econômica e social de um modo geral. Acho muito difícil comparar a realidade dos artistas de lá e o porquê de eles não se posicionarem. Inclusive não vejo necessidade de nos posicionarmos também.
Eu acho necessário pelo momento que o Brasil vive, pelo país que nós somos e por quem eu sou, por ter essa característica. É difícil guardar tudo isso quando não estou explorando esses sentimentos e pensamentos na arte, então a troca de ideia com o meu público, com os meus é importante.
Acredito que ainda estamos em construção, muitos mais que lá fora. As identidades dos grupos identitários já estão muito mais construídas nos Estados Unidos, por uma questão histórica. Nosso país ainda vive muito a síndrome da escravidão, assim como todos os países que viveram isso no mundo. Porém, nós vivemos isso de uma forma mais pesada, por sermos os últimos a abolir a escravidão, que ocorreu num processo por pressão econômica e não por consciência real. Frente essa diferença, sinto essa necessidade de falar.
Também não quero ser um cara que não possa deixar de falar de algo que não me sinta confortável. Inclusive, quero poder ser livre neste sentido, porque tem assuntos que são muito sensíveis para nós e tocar neles é muito complicado. Quero ter esse direito de não falar quando não quiser. Mas no momento me sinto nessa necessidade e com essa responsabilidade, por ser quem eu sou, morar onde eu moro, viver o que eu vivo e falar o que eu falo nas letras. De qualquer forma, as letras já deixam muito claro meu posicionamento sobre o mundo. E caso não me manifeste, minhas letras já dizem o que eu penso.
A faixa “Olho de Tigre”, e muitas outras de sua discografia, tem um tom combativo e de protesto muito evidente, algo que reflete em muitas de suas ações ao longo de sua carreira, tais como a live para arrecadar dinheiro para sua comunidade logo no início deste período de pandemia ou mesmo a sua presença nos atos realizados no mês de Junho, que tinham como principal pauta Vidas Negras Importam. Além disso, este estado de quarentena que nos encontramos, devido ao COVID, tem afetado principalmente as comunidades de baixa renda. Como foi para você equilibrar a urgência dessas manifestações diante do quadro de pandemia que vivemos? E por que você considerou que sua presença nesta manifestação era importante neste momento?
[Djonga] As pessoas de comunidade permanecem trabalhando, não puderam parar desde o início da pandemia. Elas não tiveram a oportunidade do isolamento social que as protegeria dos efeitos do COVID. Na minha visão, essas pessoas não estão protegidas. Além disso, continuamos presenciando, mesmo em meio a pandemia, a presença forte de um pensamento antidemocrático e fascistóide no nosso país e na nossa política.
Esse pensamento fascista legitima a morte dos nossos, a morte das crianças negras. Tenho falado muito das crianças, porque talvez assim toque o coração desses imbecis. O preto teve que trabalhar, tá morrendo e sofrendo racismo do mesmo jeito, com ou sem pandemia, assim é difícil esperar esse tal momento ideal que muitos prezam. O momento ideal é o que sentimos que é o ideal. Respeito muito quem não foi.
Sobre a minha presença, se as pessoas com quem trabalho podem ir lá, também posso ir lá me arriscar por elas, por isso achei importante a minha presença. Infelizmente, estamos vivendo um momento péssimo como esse, mas o racismo é um vírus que a gente não parou de viver nunca. A pandemia só tem mostrado algumas das coisas que já presenciamos e vivemos a muito tempo.
Tem uma coisa legal também que aconteceu devido às manifestações, por ora tiramos os projetos de fascistas da rua, tiramos a fora deles, mostramos que nós também estamos aqui, que essas vozes também existem. E tudo foi feito com muito cuidado, as pessoas não estavam lá para brincar e zoar, elas sabiam o porquê de estarem lá e a importância do gesto. Apesar de tudo, não foi uma parada irresponsável e sem valor.
Inclusive, no Rio de Janeiro, como resultado das manifestações, foi obtido uma liminar para impedir incursão em morro durante a pandemia. Se isso não é importante, não sei o que é. Foi algo necessário e é uma pena que foi só agora, pois estamos vivendo isso tudo que estão vendo a muito tempo.
Na faixa você canta “falam tanto de Deus e Diabo/ É que vocês só enxergam em 2D”, e na primeira faixa de Ladrão (2018), se acrescenta o D de seu próprio nome. Podemos associar o 3D apresentado em “Hat-Trick” a sua própria evolução artística nesse processo. Como você avalia essa evolução entre 2017 e 2018 no lançamento do seu terceiro álbum? E como isso influenciou na sua música hoje?
[Djonga] Sou um cara que ama fazer música, fazer arte, assistir filmes, participar da direção dos meus clipes – errando e acertando às vezes. Acredito que por isso o trabalho tem dado resultado, tanto no quesito crítica quanto no quesito números. Cada vez mais tenho me sentido um cara mais maduro para lidar com as questões da vida, do meu próprio trabalho e sei para onde quero ir com minha música e com a minha voz. Só quero chegar num lugar de liberdade e autonomia, o resto não importa.