Eu queria escrever um som sobre relacionamentos, a forma que os relacionamentos acontecem atualmente, sobre como eles tentam ser sem regras e são cheio de regras ao mesmo tempo.
Quando falamos do Bk’, mesmo com uma carreira relativamente curta, já temos algumas faixas e versos marcantes. Em “Folhas” o MC carioca explora os significados da palavra que dá nome a faixa como ninguém, tudo isso com os marcantes Flow Zidane e Ekele Flow. Abebe mostra toda sua ambição em “Filho do Fim do Mundo”. E o que falar dos versos em “Favela Vive parte 2”, “Poetas no Topo” e “Atleta do Ano (Remix)”?
Porém, dentre as composições do MC, “Amores, Vícios e Obsessões” talvez seja a faixa mais icônica. A música pertence ao disco Castelos & Ruínas (2016), seu primeiro LP solo. Antes deste trabalho, o MC carioca junto com CHS, JXNV$ e Brill pelo Nectar havia lançado uma mixtape chamada Seguimos na Sombra (2015). C&R marca a estreia do Bk’ como artista solo, sendo considerado para muitos um dos maiores discos da última década e dessa geração de MCs.
“Amores, Vícios e Obsessões” é a nona faixa de C&R, um disco marcado pelas antíteses, metáforas e duplos sentidos, características muito evidentes nas letras escritas por Bk’. Contudo, além de utilizar estes recursos ao longo de suas composições, o MC carioca também estende estes recursos para outros elementos do disco em si, como os nomes das faixas, título do disco ou mesmo o sequenciamento.
Se pensarmos nas faixas que sucedem e precedem “Amores, Vícios e Obsessões” é possível complementar o duplo sentido da faixa, que pode ser interpretada como uma faixa de amor e/ou uma faixa sobre sua relação com o rap. “Caminhos”, a oitava faixa do disco, é um reflexão sobre suas angústias e necessidades, enquanto que “Não Me Espere” continua a narrativa romântica, relatando um fim de relacionamento. Quando colocadas juntas, além da evidente história de amor que pode ser extraídas dessas faixas, é possível interpretar que esta sequência, e o disco inteiro, fale da própria relação de Bk’ e sua música.
Bem diferente de uma lovesong tradicional, a nona faixa de C&R tem um ritmo diferente, de pura adrenalina. Não só pelas rimas visuais do Bk’, mas também pela produção excepcionalmente única do JXNV$. O produtor não fez somente uma mistura entre boom bap e trap, ele fez uma fusão única entre estes dois ritmos que ao ser atravessado pelo sample de “Peaceful Ones” do Loonie Liston Smith cria um clima de grandeza para faixa, fazendo jus a própria temática de amor.
A faixa pode ser dividida como seu título, em três fases: os amores, os vícios e as obsessões.
Os Amores
A primeira fase do amor se passa em dois momentos, a antecipação ao romance, quando o casal se apaixona. Para o personagem da música isso ocorre em um momento relativamente normal, em um passeio de carro pelo Leblon.
As luzes da Zona Sul, restaurante no Leblon
Jordans, Supreme, Lebron
Mão no volante, cigarro entre o dedo
Vento dança com o seu cabelo, eu acelero o flow
Mas vejo a cena em slow
Se tu quer fechou, se que tu quer fechou
Os diversos elementos descritos mostram uma mudança de interesses do personagem, das coisas materiais para os detalhes da mulher, culminando no compromisso estabelecido entre os dois. Há, portanto, uma bela amizade antes do amor.
Num segundo momento a tensão entre os dois os leva para cama, que representa o amor físico. Inicialmente, por parte dela, aparentemente, há um afastamento. Enquanto que o interesse dele é evidente no decorrer do verso, que inclusive revela certa confiança de que ele viria a conquistá-la.
E ela dava pra outro cara, deu pra mim viu que eu sou o cara
Já não pode me ver cara a cara
Ser rainha? A coroa é cara
E eu aposto no cara ou coroa, se tu ficou afunda a canoa
E eu não ligo de gastar palavra, o problema é gastar tempo à toa
Você tem algo a perder? Ela disse: “tenho nada”
Perguntou se eu tinha alguém, eu disse: “tenho nada”
Então veja a nossa noite derramar em garrafas
Mais ou menos na metade do primeiro verso já Bk’ já começa apresentar os indícios que a paixão entre os dois começa a se desenvolver por um caminho no qual a atração carnal possa se tornar um vício.
Eu não vejo minha vida amarrada em sua garra
Faz a cena do crime, química, dois loucos
Pede pra eu ficar mais um pouco
Os Vícios
Os vícios da faixa aparecem de forma sutil e evidentemente estão relacionados a atração carnal e emocional entre os dois. É importante lembrar que se estabeleceu no início a ideia de que o casal se conhecia antes disso tudo, ou seja, havia uma amizade que pode complicar um possível fim de relacionamento.
No fim do primeiro verso, o MC carioca mostra as contradições da relação a partir de antíteses e metáforas literais. A riqueza em detalhes prende o ouvinte e dá vida a cenas dignas de um filme – não dá para perdoar o Bk’ por não existir um videoclipe dessa faixa para materializar os sentimentos que essas rimas passam.
Ela quer me dominar ou dormir na rede
Tipo aranha, o inseto e seus enfeites
Ela odeia as minhas mentiras, eu finjo acreditar nas dela
Ela quer fugir de mim
Eu busco refúgio dentro dela
Eu falo: “mulher não vale nada”
E ela fala que o homem que não presta
Corro pra não ser alvo da flecha
Volto a lembrar dela pelada
O início do segundo verso começa a mostrar que os vícios do romance se tornam uma obsessão, com potencial para se desenvolver em um ciclo interminável de idas e vindas, que por sua vez se estabelecem como o alicerce da relação.
Disse que quer me ver sofrer e bem distante
Pode ir, sei que vai voltar igual bumerangue
Corre de mim em círculos
Pra cada fim um novo ciclo
Tentamos manter o equilíbrio
Essa vida é tipo um circo
(E isso vale pros dois)
Diante dessas incertezas, os questionamentos surgem, mas não sobre a relação em si. É como se houvesse uma competição para ver quem irá decepcionar quem. Qual “erro” irá se tornar um motivo para justificar o fim do relacionamento ou a continuação do romance. O que revela um possível interesse em manter a amizade, que foi o que iniciou a atração emocional que aproximou os dois.
Qual dos de nós vai se render primeiro, fugir primeiro
Dizer que ama ou odeia primeiro, só o medo da decepção já é um tiro certeiro
E do nada joga na minha cara que não precisa de mim para nada
Que se sustenta e banca suas parada e se fosse por grana ia dar pra outro cara
É então que o erro acontece.
A confiança excessiva em ter sempre ela ao seu lado se torna uma justificativa para ele buscar o amor em outros mulheres. Uma busca por adrenalina que lhe relembre o início da relação.
Chegou lá em casa sem me avisar, sabe que eu adoro surpresas
Chegou lá em casa viu outra lá, sei que ela odeia surpresas
Disse que vai esquecer de mim, eu falei “à vontade”
Vou sentir sua falta, volte quando sentir saudade
O orgulho em admitir o erro é também o que mantém o personagem soberbo com relação a mulher. Ou talvez a amizade entre os dois seja tão grande que ele acredita cegamente que ela estará sempre lá para satisfazer as necessidades emocionais dele.
As Obsessões
Neste momento já percebemos a genialidade do Bk’ nesta faixa. A aproximação das ideias opostas de amor e ódio deixa o ouvinte ansioso em saber o desfecho da história. Uma amizade que virou amor, depois paixão e depois uma obsessão. Não satisfaz saber que a relação ia terminar, para quem escuta a faixa é algo quase que óbvio. E não basta saber que o personagem trai a mulher, outra ideia esperada para o homem, e que ele tenta justificar esta traição com o argumento da falta de confiança na mulher. A obsessão não é só do casal, é do ouvinte nesse momento.
O desfecho vem com a concretização do ciclo sem fim dessa obsessão, um amor que está acima de tudo, até mesmo da traição. O prazer que este relacionamento conturbado é o que se estabelece como necessário para dois.
Eu sou seu anjo, seu demônio, cê é meu pesadelo, é meu sonho
Ela me balança tipo o mar
Se sumir vou sentir falta, ela é tipo o ar
Diz que me quer, quer que eu morra
Quem vai deixar quem de castigo nessa vida gangorra?
Sua… cachorra!
Bk’ explora perfeitamente a produção, a cadência em seu flow e a iminência das ideias criando certa ansiedade para ouvinte. É uma faixa de amor que retrata uma faceta desse sentimento que muitos não querem admitir, o amor como uma necessidade. Porém, nem sempre saciar uma necessidade significa algo bom para os envolvidos.
Os mínimos detalhes que amarram essa história ao longo da faixa, seja pela escolha de palavras minuciosa feita pelo MC carioca ou ainda sua levada de prender o fôlego (literalmente), se combinam a produção primorosa do profeta. Talvez seja a faixa do Bk’ que esconde uma infinidade de detalhes em uma temática óbvia, o amor, mas que ele traduz em uma leitura praticamente inédita, a perspectiva do amor que temos medo em viver.
Uma metáfora sobre a relação com o rap?
Como toda faixa icônica, “Amores, Vícios e Obsessões” evoca discussões profundas sobre seu real significado e sobre o que Bk’ realmente quis comunicar com ela. Como visto, a faixa é um relato profundo sobre o amor dividido em três partes: os amores, os vícios e as obsessões, três atos que por vezes se complementam, por vezes se contradizem e em outros momentos convergem e explicitam uma realidade totalmente desconhecida pelo ouvinte.
Um desses sentidos ‘escondidos’ na faixa pode ser o do relacionamento amoroso como metáfora para descrever a relação do personagem (e talvez do próprio Bk’) com o próprio rap. Esse recurso literário não é novo no rap: faixas do rap internacional como “I Used To Love H.E.R” do Common, “Dear Summer” do JAY-Z, “Wesley’s Theory” do Kendrick Lamar, entre outras, utilizam a temática de um relacionamento para descrever a relação dos artistas com o rap ou para descrever o próprio rap enquanto gênero musical.
Contudo, o mérito de Amores, Vícios e Obsessões é o de apresentar esse relacionamento complicado com o rap de forma suficientemente implícita (afinal, é um dos sentidos possíveis para interpretar a faixa) e ao mesmo tempo oferece detalhes vívidos sobre a vida e o vaivém de um MC que decide dedicar sua vida ao rap. Vamos olhar essa questão mais de perto.
Na faixa, Bk’ descreve uma mulher que ele conheceu na rua, nos rolês na Zona Sul, nos passeios de carro e passou a se envolver com ela gradativamente até que ele estava fixado nela. Se essa ‘mulher’ no caso for o rap, o sentido passa a ser o de que Bk’ encontrou o rap nas ruas, entre amigos, nos rolês, de passagem, casualmente.
Com o passar do tempo, a relação dele com o rap se intensifica e começa a trazer os primeiros questionamentos: será possível viver com (e de) o rap? O que acontecerá se eu me envolver demais com isso? E se eu for rejeitado se me envolver demais? E se eu desse um tempo e me relacionasse com o rap de forma recreativa, sem compromisso? Mas eu respiro e vivo o rap, como posso deixar isso de lado para fazer qualquer outra coisa? Como posso viver com outra coisa que não seja o rap? Mas tem vezes que eu odeio o rap e quero me ver longe dele, como posso pensar em voltar para ele? Como posso me relacionar com algo que é meu amor, meu vício e minha obsessão?
Nós vemos, portanto, que questionamentos que naturalmente faríamos sobre um relacionamento com uma pessoal real permeiam a faixa inteira, mas ganham um sentido totalmente novo e inesperado quando analisamos essas questões a partir da perspectiva do relacionamento do Bk’ ou do personagem com o rap. O que era uma faixa sobre amor e relacionamentos complicados se transforma em uma faixa sobre o rap e para o rap como um todo.
E o que é mais interessante sobre essa faixa é que esses sentidos podem conviver perfeitamente, eles se justapõem e formam as camadas de uma das faixas mais profundas e evocativas da história do rap.
De forma simples, Bk’ conseguiu escrever uma faixa sobre amor, relacionamentos e suas contradições de forma muito particular – e talvez pessoal em alguns trechos – e rica em detalhes, ao mesmo tempo em que conseguiu descrever de forma universal o vaivém de um relacionamento amoroso, tornando implícita toda uma narrativa sobre a relação de um MC com o rap. Com metalinguagem, paradoxo e múltiplos sentidos, Amores, Vícios e Obsessões é uma aula de lírica e poesia.
Independentemente do seu significado, a grandeza da faixa e a história que ela traz abrem espaço para uma continuação, como em um filme. Será que Bk’ nos presenteará com uma parte 2 de Amores Vícios e Obsessões? Entramos em contato com o MC para conversar sobre a faixa e responder esta e outras questões.
Conversando com Bk’
O que te inspirou a escrever essa faixa? Quais foram as ideias e acontecimentos que o levaram a escrevê-la?
Eu queria escrever um som sobre relacionamentos, a forma que os relacionamentos acontecem atualmente, sobre como eles tentam ser sem regras e são cheio de regras ao mesmo tempo.
Eu queria sair do “eu te amo , você me ama” e também do “Você não me ama mais, acabou ” a intenção era falar sobre o que acontece no no meio disso.
Ela tem alguma relação com relacionamentos passados? Ou algum relacionamento de alguém próximo de você?
Sim. Eu misturei uns 2 relacionamentos que eu tive, nesse som. Quase, um verso para cada.
Em alguns momentos da faixa você rima da perspectiva feminina. Essa parte da escrita foi um desafio? Você se inspirou em alguma mulher em específico, alguma que te serve de exemplo ou que você admira? Como foi escrever a partir desse ponto de vista?
Eu sou muito observador, gosto de saber a histórias das pessoas porque eu gosto de escrever sobre pessoas.
Então, como convivi um tempo com elas, eu tentei trazer um pouco das características delas pra música, lembranças de uma conversa, até briga, tudo isso ajudou a mostrar o outro ponto de vista no som.
Durante toda a faixa você fala sobre vícios, sejam eles materiais (cigarros e bebidas) ou mais abstratos (num espectro mais sentimental ou uma atração carnal). Esse aspecto está presente na sua vida? Como você enxerga essa relação entre os dois vícios citados anteriormente?
É tudo sobre boemia.
Como foi o processo de escolha da produção? Ela antecedeu a letra ou foi o contrário? O que levou você e JXNV$ a buscar essa sonoridade para a faixa?
Eu tinha o tema na cabeça, até algumas linhas, aí lembro que fui no estúdio que o Jonas tava morando ali na Joaquim Silva, e eu pedi pra ele fazer umas paradas pique “Yellow” album do Dom Kennedy, eu tava ouvindo muito essa mixtape, e lembro dele ter falado que tinha algo melhor (foi alguma coisa assim).
Ele dropou o beat, eu pedi pra ele deixar no loop, a música nasceu, foi talvez a música que eu fiz mais rápido de todo o C&R, levei uns 20 minutos pra fazer.
Nesse dia a mina que foi inspiração para grande parte da música estava presente, ela amou a música haha, essa foi uma das sessões mais fodas de todo o C&R.
Você pretende fazer algum tipo de continuação ou podemos considerar essa faixa como uma histórica fechada/completa?
Eu já escrevi a parte 2 dela algumas vezes, mas acho que só esse ano cheguei no resultado que eu queria, talvez pro fim do ano eu lance na pista.
Como você chegou nessa ideia de dividir a faixa nas três fases que dão nome a faixa: Amores, Vícios e Obsessões?
Acredito que quando você termina um relacionamento você se sente confuso. Tipo: Será que era amor mesmo? Será que eu estava só acostumado? Será que eu tinha só medo de perder
E o resto foi fluindo, o nome apareceu pra mim, parece que alguém me entregou (risos), não lembro de ter quebrado a cabeça pra escolher um nome, minha mente só resumiu aquelas perguntas.
Você pensou em algum momento em fazer um videoclipe para faixa? Se sim, considerando que você tem alguma experiência como videomaker e lembrando da excelente atuação em “Deus do Furdunço”, você tinha alguma ideia por trás?
Eu ainda penso em fazer um clipe, na real tenho vontade de fazer um filme a partir da música, um longa, desenvolvendo toda a história, os personagens, fotografia foda. Quero muito isso acontecendo.
Existem muitas faixas no rap que a mulher é a personificação de outros sentimentos ou de ideias abstratas, como Jay Z faz em em “History” com a Vitória e a Morte ou Common faz com Hip Hop em “I Used To Love HER”. Você buscou fazer algo parecido em Amores, Vícios e Obsessões? A mulher da faixa teria um outro significado?
Sendo sincero, quando eu comecei a faixa eu só queria falar sobre relacionamentos complicados, foi a intenção inicial. Mas dentro do disco, do universo de C&R, ela se permite ter várias interpretações, assim como várias faixas do disco, é a vibe do trabalho, mas eu acho que se ela fosse um single ou estivesse em outro trabalho ela não daria esse efeito/dúvida.