Assim como João Francisco que sai da cadeia no Recife e vai para o Rio de Janeiro ser performista; José Renato, em sua solitária e melancólica viagem a trabalho; Hermila, retornando do fim do sonho de ganhar a vida no sudeste, abandonada pelo companheiro e rifando a si mesma; Violeta que vai atrás de seu amado que a abandonara e Donato, que some de sua família se mudando para Alemanha, o vazio e a busca por respostas, de encontrar quem se é, aproximam a vida e obra dos conterrâneos Gabriel “Don L” Linhares e Karim Aïnouz.
História de Aïnouz
Karim nasceu em janeiro de 1966 em Fortaleza, no Ceará. De origem argelina, de onde herdou o nome árabe, começou, ainda em 1992, a produzir curtas-metragens. Em 2001, veio a parceria com Walter Salles no roteiro de Abril Despedaçado. Nas telonas estreou com a direção de Madame Satã, por muito tempo seu grande sucesso, lançado na Un Certain Regard no Festival de Cannes. De lá até hoje, já são dezenas de produções, seja na direção ou roteiro. Recentemente, foi convidado para Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana, realizadora do Oscar.
A curiosidade de ir pro mundo sempre teve presente
na minha vida. Eu gosto de não entender direito, sabe?
De estar em um lugar que não sei o que que é. Ir descobrindo
assim. Porque tem sempre de descoberta, do por vir. Sempre
foi uma coisa muito importante e eu acho que é uma coisa que
está presente em todos os [meus] filmes […] Todos os filmes
têm alguma coisa de algum personagem, ou o personagem
principal que viaja, vai viver em outro mundo, outro planeta.
Não fiz esse, ainda, mas já, já eu farei. [risos]
Esse é o sentimento citado por Don, e expressado por Aïnoz, que os unem no mais recente disco do rapper. O roteiro de sua vida, sua mudança para São Paulo, assim como o diretor hoje residente em Berlim, na Alemanha, e a busca pela “vida lazer”— expressão alcunhada por Paty, dançarina de boate que encontra por uma das cidades que passa, abordada pelo protagonista de Viajo Porque Preciso — criando uma rebuliço em sua mente.
Roteiro de Aïnouz
Como as letras de Don remetem aos filmes do diretor conterrâneo em suas três películas mais significativas:
O Céu de Suely (2006)
Transita entre imposição e quebra de paradigmas ditos e adotados na sociedade. A personagem retorna à sua cidade natal no interior do Ceará, depois de um longo período em São Paulo motivado por amor a Mateus, seu marido, quando eram jovens; lá constituiu uma família, dando luz à ‘Mateusinho’ e o alto custo de vida não conciliou com a renda familiar, forçando-os a irem embora.
De volta à Iguatu, Hermila passa então a contar os dias para ver seu esposo enquanto rememora a infância, o calor, suas amizades e uma antiga paixão. Desde a mudança brusca do romantismo das cenas iniciais, ao desenvolver da trama assim que o cenário muda, o roteiro passa a se desvencilhar cruelmente, abrindo-nos os olhos a uma gravidez não planejada e a um casamento em crise: Criança no colo, mulher, solidão, cansaço, choro, angústia. E na tentativa de amenizar os gastos de sua família, Hermila passa a vender rifas com sorteio de Whisky pelas ruas da cidade. Em sua primeira noitada conhece a Georgina Jéssica (“Só Jéssica, né Maria?”), uma prostituta, amiga de sua tia Maria. Chegado o esperado dia, a ansiedade insiste em mantê-la à espera na rodoviária. O ônibus esvazia-se e seu amado não está lá. Começa então o ponto crucial de sua história: abandonada com o filho, sem explicações, sem apoio; o plano de seu -ex- marido já vinha a ser aplicado desde o momento em que a pôs para viajar na frente com o bebê, sob promessas de uma vida melhor e com consentimento de sua sogra, que também mora em Iguatu. Desamparada, Hermila tenta um diálogo para saber o que aconteceu, decepcionando-se mais ainda ao saber que enquanto faltava alimento a ela e a seu filho, a sua sogra recebia dinheiro de Mateus – em uma cena que dispara: “Teu filho é um sacana”.
Sente-se a partir daqui um ambiente grotesco que mensura o fim de seu relacionamento. Depois de um breve envolvimento com sua paixão de infância, João, a sua vida toma rumos desenfreados, uma vez que sua convivência com Jéssica influencia seus atos à procura de dinheiro fácil e rápido na prostituição. Seu filho passa a aparecer cada vez menos em cena, causando assim uma estranheza que mexe com o imaginário do telespectador que paira a pensar naquela ida à rodoviária, desta vez procurando por passagens a lugares mais distantes dali.
Com o plano em mente, agora Suely entra como principal prêmio da rifa, intitulado “uma noite paraíso”… Desprezada por moradores da cidade e por sua própria família, seu protagonismo deságua numa maré de agressões físicas e verbais, que resultam em sua expulsão da casa e a perda indireta da guarda de seu filho. A filmografia de Karim Aïnouz exerce um trabalho indispensável e minucioso, que capta a nudez, o sexo, a violência, o desespero e por fim, a nova fuga – desta vez não por amor, mas por falta dele – de Hermila. É uma obra singela, mas que dá nos nervos.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009)
AMOR
O amor é um grande tema para o filme. José Renato produz infinitas declarações para Galega, sua companheira, no entanto é a fala de Paty, a dançarina de boate que encontra na estrada, que mais chama atenção a esse respeito. Paty reclama da sua vida naquele momento e em seguida faz preces para uma vida melhor:
— Pra esquecer esse momento todo, porque senão, não dá certo. É triste a pessoa gostar sem ser gostado.
— Tu queria ter um amor?
— E como eu queria.
—Então diga aí, como você queria seu amor?
— Eu queria ter um amor que seja reservado só pra mim. Toda hora que eu chegar encontrar ele, encontrar aquela pessoa só pra mim. Eu acho romântico.
O desejo de Paty em ser amada coincide com aquelas linhas de Don L, entoadas com sinceridade e esperança: os dois esperam que um dia o amor se mostre possível, ainda que suas vidas sejam duras e caóticas.
Eu quero ser amado
Assumindo quando amo pa caralho
LEMBRANÇAS
Ah, que saudade do que eu nunca mais vi
No fundo dos meus olhos
Será memo que eu me perdi
Pelos meus caminhos tortos
Em “Aquela Fé”, Don L mobiliza lembranças e parcerias do passado, desde quando era um jovem sonhador até o momento atual, em que questiona suas atitudes e escolhas no decorrer dos anos. Assim como lembrar de algo ou alguém do passado pode te fazer produzir coisas novas, como o reencontro de Don com seus parceiros do Costa a Costa, as lembranças podem amargar as experiências do presente, como mostra José Renato pensando em Galega:
A única coisa que me faz feliz nessa viagem são as lembranças que tenho de ti. Não! Não, Galega! Isso é mentira. Não sei escrever carta de amor. Não aguento a ideia de ficar só. Sabia que a única coisa que me deixa triste nessa viagem são as lembranças que tenho de ti?
DOR
Todo casamento é perfeito, até que acaba
Num dado momento, José Renato conta sobre a separação de Galega. A saudade que ele parecia sentir por conta dos trinta dias de viagem, era na verdade a dor do fim do relacionamento. Sua intenção era de se embrenhar pelo sertão para esquecê-la. Chegando lá, só fez lembrar dela.
Que agonia esse lugar, tudo se arrasta, que saudade da porra.
Aquele lugar monótono, em que nada de surpreendente acontece e a vida parece se repetir a cada instante, faz com que o personagem se divida entre a vontade de ficar e de partir. Don L, em entrevista para a Redbull, aponta uma qualidade de Ainouz que faz com que o MC e o geólogo da ficção se encontrem em um ponto comum: a dor como um motor
Porque o Aïnouz é daqueles diretores que faz você sentir inclusive o tédio, o vazio. Não apenas entender, tipo, ah ok, aqui o personagem sentiu um vazio, e agora a gente pode continuar nossa história à prova de déficit de atenção e continuar com a ação! Não, você precisa sentir o vazio. Você precisa sentir a dor. E isso torna real, porque só a dor é real. E a nossa treta é mais pesada. Nosso deserto tá mais pra Saara do que Arizona. E minha vida tá mais pra um filme do Aïnouz. A dor é real.
SUPERAÇÃO
A maior dor do personagem é a perda do grande amor. O sentimento de impotência diante da separação faz com que ao final filme, ele transforme a dor em impulso para superação.
Por isso fiz essa viagem, pra me mover. Pra voltar a caminhar. Voltar a comer o sanduíche de filé, voltar a andar de moto,voltar a ver o Fortaleza ganhar, voltar a ir à praia de domingo. Pra voltar a viver.
Em conclusão similar chega Don L, ao final do disco. A vida deve ser aproveitada, independente disso ou daquilo. O salto de José Renato no mar é um salto em direção à vida.
E a noite só começou
A noite só começou
A vida só começou
E eu quero me sentir vivo
Eu quero me sentir vivo
Eu quero me sentir vivo
Eu quero me sentir vivo
Praia do Futuro (2014)
Após uma tragédia, o salva-vidas Donato se envolve com o motociclista aventureiro alemão Konrad. Descontente com sua vida atual e movido pelo romance, abandona tudo e se muda para Alemanha. É uma história de paixão, sentimento de despertencimento, fuga e viagem ao passado.
ESTRANGEIRO
Sentir-se incomodado e não pertencente a um determinado lugar é resultado de um sentimento de busca, fuga, conhecer-se. Quando Donato encontra o alemão Konrad, vai atrás desse sonho, desse romance, de conhecer o mundo e sair desse lugar que já não o agrada.
No veneno da paixão
— Don L em “Eu Não Te Amo”
Quando cê só aceita o sonho
Quando eu era mais estrangeiro aqui
Do que ainda sou
E já sentia que não pertencia ali também, saca?
Procurando a liberdade com o que tinha em mãos
PASSADO
Mesmo tentando “fugir” do que abandonara, o passado de Donato o é retomado de várias formas. Aceitando ou não, há momentos que o construíram e fazem parte de suas lembranças. Mesmo rejeitando determinadas coisas, o passado faz parte de seu mundo, de sua vivência, de sua história.
Será que eu consigo lembrar?
— Don L em “Aquela Fé”
Daquela fé
No fundo dos olhos de um velho eu
Um jovem sonhador