Cesar MC fala sobre seu álbum de estréia

Dai a César o que é de César
e dai a Deus o que é de Deus

Em entrevista, César dialoga sobre o processo criativo para seu primeiro álbum da carreira e suas vivências que firmemente contribuíram para a sua escalada no cenário musical do rap brasileiro.

Veja abaixo a entrevista na íntegra com César

O que levou você a escolher “Dai A César O Que É De César” como título do álbum? O número de faixas para a tracklist também têm a ver com referência bíblica (a citar os 7 dias em que Deus criou o mundo)?

Cesar: O que me levou a escolher o nome “Dai a Cesar O Que É de Cesar” como título do álbum foi um episódio bíblico onde a fala de Jesus desvincula o uso da fé como um projeto de poder político, como legitimidade do que acontecia naquela época. E, trazendo para uma reflexão das realidades de hoje em dia, é muito importante que essa abordagem seja também colocada em pauta nos discursos, para que a fé seja desvinculada da má intenção daqueles que fazem uso dela para benefício próprio. Então, entendendo que “Dai a Cesar O Que É De César” vem para falar de Cesar em todas as perspectivas possíveis, tanto do Cesar moleque preto de favela e periferia, que tá tentando se afirmar e pegar o que é dele e ter uma voz, tanto do Cesar que é um ser político e também tem seus confrontos e carrega na pele consequências de uma sociedade estruturalmente racista e também o Cesar cheio de fé, e por ter tanta fé, faz questão de desvincular a fé do que fizeram dessa fé, então “Dai a Cesar O Que É De César” também é uma frase de desautorização de um pensamento teocrático que flerta demais com a política brasileira. O álbum vem para falar de diversas perspectivas de sonho, de enfrentamento, de confronto, de autoafirmação, e essa frase sintetiza um poucos dessas direções.

A escolha das sete faixas, por mais que soe como algo que também possa ser contemplado dentro da perspectiva criacionista dos sete dias, eu acho que tem um pouco disso, até pela questão do ‘7’, da perfeição e tal. Mas eu acho que muitos outros fatores me levaram ao número sete, no sentido de eu entender que, nesse momento, era exatamente o que eu precisava entregar. Muitas outras músicas ficaram no caminho, mas eu entendi que o conceito estava tão encaixado, e você consegue destrinchar ele em tantas perspectivas que eu não tive a ousadia de não seguir meu coração. Tinha que ser essas músicas. Elas foram totalmente selecionadas e contemplam o conceito de uma forma muito específica, tá ligado. Então eu acho que o número sete é por esse motivo.

 Quais ensinamentos de vida e de fé permeiam o seu trabalho? E o que você aprendeu sobre acreditar nos seus sonhos, a ponto de mudar a sua realidade e se tornar uma referência no rap nacional?

Cesar: Desde que eu ganhei a minha primeira batalha ali na praça do Sesc, onde tinham duas ou três pessoas. Eu comecei a enxergar que às vezes a gente precisa trabalhar em algo que muitas pessoas vão dizer que não é significativo, que não é relevante, mas só você sabe o que você está construindo. Porque quando eu voltava pra casa com aquelas folhinha, escrito “você ganhou”, e foram folhinhas e folhinhas escrito “você ganhou” e muitas vezes as pessoas não entendiam a grandiosidade que eu via naquela folhinha e o que eu sonhava construir através disso. Era muito mais que uma folhinha. E eu entendi nessa minha jornada de fé e trabalho, que às vezes a gente precisa seguir esse espaço da punição pra gente honrar aquilo que a gente acredita, tá ligado. Mesmo que o mundo todo ache que isso não vale a pena e que não é relevante. De folhinha em folhinha eu sabia que eu estava construindo algo que era pra escrever minha própria história. Então eu acredito que essa insistência em valorizar aquilo que você ama, faz com que seu trabalho tenha mais significado. E não é uma jornada fácil, a nossa fé muitas vezes vai embora. Mas é necessário persistir, é necessário acreditar. Então eu poderia resumir nessa perspectiva de acreditar, de lutar. E é isso que eu tento passar pra rapaziada na comunidade. Porque às vezes a comunidade se torna um cemitério de sonhos. Têm as dificuldades da vida, que estruturalmente afetam ali o desenvolvimento de cada cidadão. Acabam sufocando sonhos. E às vezes a gente tem uma intuição ali no coração que a gente deixa ir embora, mas eu queria muito que vários menor da comunidade aí, conseguissem olhar para dentro de si e entender que aquele sonho é grandioso sim. Não é fácil, porque às vezes tem que conciliar com uma outra coisa. Mas enquanto for possível ter fé, que eles tenham fé.

O que contribuiu para que houvesse o “estalo” de lançar um álbum autobiográfico? Quais inquietações surgiram? Existe alguma música que seja mais “especial” pra você?

Cesar: Dizem que todo álbum de estreia é autobiográfico. Porque a gente não consegue sintetizar um conceito, uma ideia só. Sempre tem um pouco daquilo que você viveu a vida inteira, até chegar àquele momento. Porque é o álbum de estreia, é o primeiro compilado de músicas que você tirou ali, de dentro da alma, para formar um projeto que seja bem a sua cara. Então eu acredito que não tinha uma outra forma de trazer um álbum sem que fosse autobiográfico. Até porque eu acredito que a música, ela é vivida, antes de ser escrita. Eu sempre carrego isso comigo. Todas aquelas músicas são momentos específicos, experiências de vida específicas, que me fizeram desaguar na música. É como se eu tivesse vivido algo e a letra fosse só uma consequência que foi parar nas batidas e rimas. Então esse tom autobiográfico vem dessa minha consciência de que eu canto a vida, e a música ela é vivida antes de ser escrita. E é por isso que vou ter sempre esse tom autobiográfico.

Se eu fosse destacar uma música, eu iria falar bastante de “Dai a Cesar O Que é De Cesar”, porque ela sintetiza bem a ideia do álbum. Mas eu também falaria de “Pretinha”, porque “Pretinha” por incrível que pareça, ela dá o mesmo tom que “Dai a Cesar O Que é De Cesar”, mas de um outro lado da moeda. Porque a revolta, ela só se justifica, quando ela é fundamentada no amor. As pessoas, quando protestam e revoltam, não o fazem somente pela ideia da revolta, simplesmente pelo fetiche de estar revoltado, mas sim pelo amor à causa e àquilo que se foi ferido. E aí vem a revolta. No caso do racismo, por exemplo, a gente tá falando de um extermínio negro, de irmãos e irmãs que a gente ama e que estão sendo cancelados. Sonhos estão sendo perdidos. Então a revolta está sendo fundamentada pelo amor à nossa pele, pela nossa cor e pela nossa história. E a minha revolta ali, pelo que fazem da fé, ela é justificada no amor que eu tenho pela minha fé. E “Pretinha” destrincha um pouco essa ideia da fé ser o que ela é, e não o que fizeram dela. E eu faço ali um duplo sentido interpretativo, para que ela seja um lovesong, mas que ela leve a uma outra coisa além de um lovesong, E a galera já tá pegando um pouco disso, a galera entendeu exatamente o que significa “Pretinha”. E ela tem algo muito especial pra mim. “Navega” também carrega algo muito especial, e eu acho que consegui sintetizar bem tudo isso nestas sete faixas, que carregam algo muito singular.

Como você se sentiu ao ver seus trabalhos serem reconhecidos? E como é trabalhar em um álbum de estreia ao lado de artistas como Emicida e Djonga? Teve um porquê para a escolha destas participações especiais?

Cesar: Eu tento uma identificação enorme com a arte, a carreira e a postura desses ícones da música brasileira, que são o Emicida e o Djonga. A força que esses caras passam através da arte deles, para mim, transformou a minha arte também. Então eu acredito que esse álbum de estreia, que é o material que eu separei pra colocar minha maior força, seria de uma honra incrível somar força com eles nesse momento. Então quando eu fiz esse convite e eles toparam, e a gente se juntou ali pra fazer esse trabalho, eu senti como se fosse um sonho realizado. Eu acho que a gente somou forças num grito muito necessário e foi uma honra trabalhar com esses caras. Eu tenho um carinho muito grande pela arte deles e pela pessoa deles. E eu acredito que a gente chegou em um resultado que veio para dar luz à cena em vários aspectos.

 Como foi o processo de escolha dos produtores para a elaboração do álbum?

Cesar: Desde a música “Canção Infantil”, eu tenho uma afinidade muito grande com o Tibery e com o Felipe Artioli do Studio Sala de Estar. A gente tem uma maneira ali de conversar, de se entender, que funciona muito bem. Então não tinha como escolher outras pessoas para estarem à frente desse álbum, senão esses dois produtores incríveis e que eu tenho uma admiração incrível. E um outro produtor que eu também sempre admirei muito, é o Nave. eu sempre esperei pelo momento em que a gente pudesse fazer uma colaboração juntos. Então, fazendo a ponte com o Emicida, com o Tibery e com o Felipe, a gente entendeu que o Nave podia trazer algo incrível e podia somar muito nessa colaboração. Então fizemos o convite e ele topou, entrou na música onde o Emicida faz a participação e eu acho que aquele todo foi muito significativo. E sem esquecer também, da participação do Jogzz, porque ele tem algo muito especial. O Jogzz foi um dos caras que, numa das primeiras músicas minhas, que teve um alcance na época das batalhas, ele produziu aquela música “Dissparo” com vários outros mc’s e “Poetas No Topo” também. Então eu também tenho uma história com o Jogzz muito bacana. E como a gente não podia deixar de botar um boom bap clássico ali, eu o convoquei e eu acho que todos eles foram uma escalação de ouro pra gente chegar num resultado que honrasse o que a gente acredita, através da música.

Em “Preciso Voltar Com a Folhinha” há uma reverência à toda sua trajetória, especialmente ao falar das batalhas de rimas. Qual o sentimento e experiências que você carrega disso tudo?

Cesar:“Eu Precisava Voltar Com a Folhinha” é aquele diário de bordo que faz a gente olhar pra trás e entender qual é o próximo passo e também o que nunca a gente pode esquecer. Então eu lembro que, em muitos momentos da minha vida, eu achei que estivesse disputando contra os meus adversários, mas bastou pouco tempo para eu conseguir perceber que nunca foi sobre os adversários da folhinha. Sempre foi sobre as dificuldades cotidianas que eu enfrentava e que eu usava a batalha como uma vazão para vencer tudo o que me afetava. As pessoas falam que eu era um pouco agressivo nas batalhas, mas talvez a agressividade foi a forma mais honesta que eu encontrei para poder revidar a agressividade que eu recebia do mundo. Então “Eu Precisava Voltar Com a Folhinha” foi a forma que eu me encontrei com a cultura hip hop , para construir um espaço onde eu pudesse sonhar. Então as folhinhas são símbolos de toda a minha trajetória até aqui. De folhinha em folhinha, eu estava evoluindo como pessoa, eu estava construindo um espaço de voz dentro do rap, eu estava entendendo para onde eu podia caminhar, sacou. Então essa faixa narra, assim autobiograficamente, essa perspectiva de um diário de bordo, de um sonho sendo construído de folhinha em folhinha, até que a minha própria história estivesse escrita e que ainda têm muito a escrever. Então, com certeza, é voltar a reviver os momentos mesmo, de que a gente só pode dar os próximos passos se a gente voltar ao começo.

 O que você diria ao César lá do início? E quais foram os principais desafios que você teve que enfrentar nesse processo de amadurecimento artístico?

Cesar: Se eu voltasse ao começo, eu diria, sem dúvida, pra essa persistência ficar sempre na minha mentalidade. Porque em muitos momentos a gente sabota os nossos próprios sonhos. A gente cresce acreditando, persistindo, trabalhando e em alguns momentos a gente até experimenta um pouco dessa realidade que vai dar certo, e a gente sabota com o pensamento de “será que é isso mesmo?”. Então, talvez se eu tivesse acreditado ainda mais, eu conseguiria resultados ainda maiores. Então é isso que eu tento espalhar às outras pessoas. Essa sinceridade do seu sonho, e o trabalho duríssimo disso também. E eu também diria para parar de idolatrar a ideia do “eu cheguei lá”, sabe, porque eu acredito que a gente nunca “chega lá”, a gente sempre recomeça de uma base melhor. Então em cada momento da minha vida que eu pude experimentar o gosto de uma vitória, que eu pudesse pensar sempre “você tem uma base melhor, recomeça daí”. Porque é isso que eu tenho aprendido nos dias de hoje, e quando eu consigo algum tipo de conquista e vitória, eu me lembro de que eu não cheguei lá. Eu recomeço dessa base. Então é um pouco sobre isso.

O meu amadurecimento é conseguir transmitir ao máximo a ideia da poesia através da música. Porque eu tenho isso comigo, eu faço a poesia e eu tento respeitar a poesia dentro da sonoridade e a sonoridade dentro da poesia. E esse equilíbrio de não empobrecer a lírica pela desculpa sonora e nem empobrecer a sonoridade pela lírica, é o amadurecimento que eu vi e que a batalha me ajudou muito com isso. Então, potencializar a lírica dando vazão à sonoridade é um amadurecimento constante que eu tento equilibrar na minha carreira.

Mande um recado ou incentivo aos seus colegas de batalhas.

Cesar: O meu recado e o incentivo que eu dou, pra galera da batalha, é que eles rimam. Por mais cômico que isso pareça, é no sentido de que a gente não sabe até onde uma rima pode nos levar. Então rimam para mudar o mundo mesmo, rima cheios de fome mesmo, rimam como se tudo dependesse daquela rima mesmo. Porque a gente constrói coisas que muita gente ao nosso redor não tem ideia do que é, mas você sabe o tamanho dos seus sonhos, então rimam.

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