Febem & CESRV resgatam as raízes da cultura negra com “ABAIXO DO RADAR”

Alguns artistas sentem um incômodo profundo ao pensar na possibilidade de se prender em seguir tendências e replicar fórmulas apenas porque vende mais. Dominados por uma autocobrança perfeccionista, adotam um código de conduta calcado na rejeição de se vender e entregar trabalhos medíocres. Não é que não queiram dinheiro; querem, sim, mas buscam esse dinheiro sem abrir mão do que consideram ser uma arte relevante.

Defender e nutrir esse caminho do Hip-hop enquanto canaliza sua visão crua de mundo não é tarefa fácil, principalmente quando isso significa permanecer fora dos holofotes da indústria, mantendo uma carreira artística moldada pelas raízes do underground. 

Esses princípios são refletidos em toda a discografia de Febem e CESRV, mas, em “ABAIXO DO RADAR“, tudo isso ganha uma dimensão ainda mais especial. Eles combinam a tradição oral da cultura que representam com uma roupagem moderna muito bem aplicada do Boom bap, solidificando suas posições como figuras centrais do rap brasileiro nos dias atuais.

Faça dinheiro mas não esqueça de fazer história

No Brasil, a tradição oral da Diáspora Africana encontrou na música uma poderosa forma de resistência e preservação cultural. Quando os africanos foram forçados a vir como escravos, trouxeram consigo suas tradições, crenças e práticas. A música, em especial, tornou-se um canal essencial para expressar e transmitir essas heranças, mantendo viva a identidade cultural e lutando contra a opressão com o samba, o jongo, o maracatu e os blocos afro-brasileiros como o Ilê Aiyê e o Olodum, na Bahia.

Esses gêneros nascem da herança africana e são transmutados na diáspora. A diáspora é o elemento de transmutação que permite que esses estilos apareçam da forma que aparecem, quase como um desejo de unificação (e recriação) diante da fragmentação da experiência colonial. Com o passar dos anos, essa resistência se estendeu a toda forma de arte nascida das raízes negras, como também o funk e o rap. 

No entanto, vivemos em um momento em que o hip-hop está sendo colonizado. A apropriação cultural, a comercialização excessiva e a marginalização dos criadores ameaçam diluir a autenticidade e o propósito poderoso dessa cultura. É crucial reconhecer e resistir a esses processos para preservar nossas raízes e sua importância como ferramenta de resistência e expressão cultural. Essa é exatamente a luta que Febem sustenta nos versos e CESRV carrega na produção.

DNA de várias rainha 

matando medo todo dia, 

é esculpido à machado, sangue forte

Tem Dandara, Maria Bonita, 

salve o povo da Jurema, 

outro tema nada a ver com Elizabeth (toma)”

Febem – “NÓIS É ISSO AÍ”

Por isso que “ABAIXO DO RADAR” remete a “Nada como um Dia após o Outro Dia” e “Sobrevivendo no Inferno” do grupo Racionais MC’s tanto em ritmo quanto em poesia. Os três álbuns tem uma ligação simbólica, tipo um filho que carrega os traumas geracionais do pai, evitando os mesmos erros, mas herdando a mesma postura e comportamento ao explorar profundamente temas como resistência, vulnerabilidade, identidade e a preservação da cultura afro-diaspórica brasileira. 

Iniciar o álbum com uma versão nova de “Jorge da Capadócia” é uma prova dessa conexão, realçando a imagem de resgate da arte que veio antes de Febem. Assim como os Racionais foram influenciados por Jorge Ben, Febem é influenciado pelos Racionais.

“Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge 

Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem 

Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem 

Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam”

Smile – “ABAIXO DO RADAR”

Essa linha do tempo é visível com as três versões de “Jorge da Capadócia”: a de 1975 do Jorge Ben, a de 1997 dos Racionais como abertura de “Sobrevivendo no Inferno” e agora a de 2024 com Febem como abertura de “ABAIXO DO RADAR”. Ao trazer essa nova interpretação, Febem homenageia as raízes e continua a tradição, mostrando a evolução e a continuidade da cultura musical afro-brasileira através das gerações.

Além disso, outra forma de homenagem conduzida por Febem acontece ao fazer referências explícitas no estilo de rimar, remetendo a raps clássicos do Racionais. Por exemplo, é evidente a entonação forte com seu sotaque paulista em algumas sílabas e gírias pontuais, expressando elas com a mesma firmeza e eloquência com que Mano Brown e até mesmo Sabotage rimavam no início dos anos 2000.

Luz no fim do túnel, foco de esperança

Cada verso do Febem é uma manifestação de sua experiência pessoal e coletiva, com letras carregadas de significado que refletem as vivências nas periferias paulistas. Suas rimas são imbuídas de uma compreensão aguda dos problemas sociais que enfrenta em uma luta constante pela sobrevivência e dignidade. 

Ele se mostra vulnerável e inseguro diante da instabilidade sufocante devido à alta demanda e autocobrança que as dificuldades constantes trazem. Ao falar sobre si mesmo, ele atravessa todas as pessoas que se identificam e se sentem sem esperança diante de problemas aparentemente insolucionáveis, mergulhados em crises de ansiedade que desanimam a seguir em frente.

“Dando continuidade 

jamais esqueça da base

Se muita gente depende 

então temo que fazer jus

Nem que seja por um triz

Limpa o sangue, tira o pus

Coleção de cicatriz

Dele rapa, é minha raiz

Quanto custa pra ser feliz?” 

Febem – “SEM FERIR NINGUÉM”

Para transmitir força de forma criativa e autêntica, ele celebra suas conquistas, inspirando outros jovens a seguir o caminho certo e resistir às tentações. Ao valorizar suas vitórias materiais, ele não confunde ambição com ganância, usando-as como motivos que impulsionam o progresso, mesmo diante das dificuldades, como uma forma de perseverar sobre todas as pessoas que desacreditaram de sua caminhada. 

Simultaneamente, critica as abordagens vazias e superficiais do mainstream, que glorificam conquistas pessoais desconectadas da realidade da classe baixa, a qual o hip-hop sempre representou e deve continuar representando.

Tendência, tem quem copia, tem quem lança

Nos anos 90 e 2000, as produções do gênero Boom bap eram bem pesadas, com baixos fortes, samples de soul, funk e jazz, e batidas de caixa e bumbo marcantes. Usavam samplers como o Akai MPC e drum machines, o que deixava o som mais cru e direto, pois utilizam poucos elementos – um loop de sample, uma linha de baixo e uma bateria básica. Dessa forma, a falta de camadas complexas permite que cada elemento seja ouvido claramente, sem distrações, destacando a parte rítmica enquanto dava o espaço sob medida para a lírica brilhar.

Hoje em dia, o Boom bap moderno ainda tem batidas pesadas e usa samples como antigamente, mas a produção é mais refinada e profissional graças à tecnologia digital avançada com o uso de DAWs (Digital Audio Workstations) como Ableton Live e FL Studio. Além disso, o estilo moderno abrange outros gêneros musicais que estão em alta, como lo-fi, trap, grime, drill e jersey club. Isso cria um som híbrido que atrai tanto fãs antigos quanto novos ouvintes.

“Bling-bling, 

dez ano’ aqui e o beat ainda é do CESRV

Assim, simples assim, 

obrigado, mainstream!!”

Febem – “OBRIGADO MAINSTREAM”

E é nessa pegada mais moderna do Boombap que o CESRV assina mais uma vez a produção de todo o disco com um domínio técnico notável que só eleva a qualidade da obra. As batidas são uma extensão da poesia de Febem, criando uma paisagem sonora que é contemporânea e fiel às raízes do hip-hop. Isso proporciona uma base sólida que permite ao rapper explorar diferentes ritmos e cadências sem perder a coesão do álbum.

Pra acompanhar essa produção tão cheia de vida, Febem sustenta seus versos com flows que se equilibram através de uma métrica precisa e variação constante da cadência, alternando expressões longas e curtas enquanto pula de um padrão de rimas para outro em saltos macios. Isso torna sua letra dinâmica e imprevisível, flutuando sobre o tema abordado com a riqueza de sua poesia. 

“Atirador de elite imaginário, 

cãozinho dos teclado

Que não faz ninguém dançar, 

mas adora apontar (filha da)

Abaixo do chão à espera de uma brecha, 

de fato

O ambiente preferido desses rato”

Febem – “NÓIS É ISSO AÍ”

Os samples usados no decorrer do álbum fortalecem a sequência fluida das 10 faixas, conectando-as como se tudo tenha sido calculado para sustentar a variedade rítmica que mantém o ouvinte engajado do início ao fim. São emocionantes e conversam diretamente com o que está sendo expresso, tornando toda a experiência imperdível. 

As estruturas das músicas e as direções criativas são sofisticadas e frequentemente desafiadoras, mostrando a capacidade da dupla de se reinventar e manter a obra interessante, o que dá um fator replay muito alto.

Inspiração não falta quando existe identidade

Febem, com suas letras afiadas e carregadas de emoção, e CESRV, com sua produção técnica impecável, criam um álbum que não só entretém, mas também provoca reflexão e diálogo. Esta obra reafirma o poder do hip-hop como ferramenta de resistência e transformação social, inspirando ouvintes e até mesmo outros rappers a questionar o status quo. Honrando a tradição, eles também apontam para um futuro onde a integridade artística e o propósito são inegociáveis.

“ABAIXO DO RADAR” prova que a verdadeira arte sobrevive e prospera mesmo fora dos holofotes. Este compromisso com a qualidade coloca o álbum na mesma prateleira com outros clássicos da história do rap nacional, no topo de todos os radares com um sinal de alerta enorme dizendo: “OBRIGATÓRIO!”.

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