Movimento ADT (Arte de Transformar/Ainda Dá Tempo) colabora com os primeiros passos de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas no mercado da música
Numa sociedade onde o contexto social determina oportunidades, acessos e desenvolvimento, cabe à parcela de indivíduos conscientes e inconformados agir para transformar as consequências negativas da desigualdade. É com esse objetivo que o movimento ADT (Ainda Dá Tempo) atua no Rio de Janeiro. Oferecendo oficinas formativas em áreas técnicas no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE-RJ), um órgão do Governo do Estado do Rio de Janeiro vinculado desde 2008 à Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC/RJ). Usando a música como nova perspectiva para os jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e no suporte aos interessados na continuidade de atuação na área escolhida após conquistar a sua liberdade.
Criado em 2021, na cidade do Rio de Janeiro, pelo produtor musical Mathiolo Caminha ao lado do DJ SACI (Oriente) e dos rappers e compositores Knust e Mozart MZ, o ADT anuncia um novo momento: o lançamento do EP “Rua Expressa”, com uma sonoridade que une Boombap, R&B e TrapSoul, composto por 5 faixas e protagonizado por 4 jovens (2 meninos e 2 meninas) que participaram das oficinas no DEGASE.

Além do lançamento, o projeto se propõe a auxiliar os jovens que possuem interesse em dar continuidade ao fazer musical e ter a música como ofício, compartilhando os conhecimentos que são necessários para se manter no mercado além da estrutura que dispõem enquanto artistas independentes.
Mathiolo, Dj Saci, MZ e Knust conversaram com a FLAGRA e falaram mais sobre os processos de desenvolvimento e aprimoramento do projeto.
Flagra: O Mathiolo dava palestras no Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Queria entender mais profundamente como foi esse processo de transformar essas palestras em um projeto mais sólido.
Mathiolo: Vou trazer um pouquinho a história antes. Nós quatro, que é formado pelo Knust, MZ, o Saci e eu, trabalhávamos com algum tipo de ação social antes de ter se juntado. Comecei a trabalhar com o Oriente e fui chamado para fazer um clipe no Morro do Cavalão; Não só ir lá gravar. A gente trocou ideia de fazer uma espécie de oficina na associação de moradores, junto com o Dinho, que é um responsável, um agente social. Só que a gente não conseguiu fazer em tempo hábil, mas recebi um convite para fazer uma palestra no Degase através da terapia Ocupacional, por amigo comum comigo, que é o Renan. Aproveitamos para desenvolver as oficinas com dez visitas. Levamos profissionais para ajudar na composição, beatmakers, produtores musicais para ajudar nessa construção do beat da música. A equipe de audiovisual também. E no final, a gente finalizou com a palestra do Miltinho Vieira, trazendo esse lado das conquistas, energia, lei, atração, e poder da mente, sabe? No dia da visita do Miltinho, a diretora da Unidade Feminina do PAC Jessé, Natália, convidou a gente para ir na unidade feminina fazer esse trabalho. Fizemos as oficinas lá também. Adaptamos algumas coisas por ser unidade feminina e após isso, fomos chamados para a escola para fazer uma parceria com a Firjan.

Flagra: O projeto oferece oficinas formativas para esses jovens e de alguma forma vocês se conectam quando eles saem, demonstra algum interesse. Mas existe algum apoio a esses meninos e meninas que conquistam a liberdade e desejam seguir na carreira artística?
Mathiolo: Tem toda uma estrutura. Hoje conta com um estúdio próprio em Botafogo, do Dj Saci. Foi uma força maior que fez mover a gente em conjunto, para conseguir esse espaço. Nós vemos esses jovens que saíram e continuam trabalhando com a gente. Produzimos uma faixa de cada um, com parceria de grandes estúdios daqui do Rio, também da Casa do Mato. São estúdios de referência. Produzimos um clipe de cada um também, e essa é uma estrutura que hoje, por conta própria, conseguimos fazer a parte do audiovisual e da produção da faixa em si. Apesar dessa estrutura ser boa pqra quem é independente, almejamos bem mais de fato. Queremos trabalhar com eles depois, aqui fora, mas queremos mesmo é expandir um pouco mais.
MZ: Eu acho que o desafio aqui fora também é conseguir conciliar a questão do momento de vida deles e de inserir eles nessa questão da música mais profissionalmente. Então conseguimos trazer também o produtor Maré, que está com o ADT agora, tem a Ana, que é psicóloga, que acompanha o nosso projeto, que dá esse suporte para os jovens e é o que, a princípio, tem conseguido somar para eles agora. Final de ano, teve um camping que a gente levou para um estúdio pra eles entenderem como funciona trabalhar com música, mas também deixando a parada ser um pouco amor, conhecendo a música e tendo referências e criando referências. A paixão pela profissão, mas pela arte também.
Flagra: Existe alguma curadoria que vocês fazem para escolher quais artistas vão participar do EP e quais músicas serão lançadas?
MZ: Bom, nesse caso foi muito natural, né? Foram os jovens que realmente tiveram o ímpeto de continuar o trabalho assim que acabaram participando do Rua Expressa. Alguns, infelizmente, ao longo do processo, não puderam continuar porque estão de volta para o sistema carcerário. Mas nesse aspecto eu acho que foi muito natural. A galera que teve a persistência de tá fazendo, de estar aqui fora, continuando o trabalho, acabou integrando esse trabalho aí.
Mathiolo: Eu acho que foi isso que o MZ falou. E acrescentando a gente procura mais quem quer mesmo quem é, do que o próprio talento maior, entende? Alguém que tá afim de lutar pelo sonho, alguém que acredita no sonho, alguém que goste de trabalhar em conjunto também. Não alguém que tá só pela fama e pelo dinheiro, sabe. A gente sabe que a gente precisa disso para viver. Inclusive, a gente tá em busca disso. Mas é ter isso mais como consequência. Porque quando você faz a arte pensando nessas coisas mais materiais, não é verdade. Então a gente busca mais verdade do que talento em si propriamente. Porque a gente acredita que o talento vai se desenvolvendo ali, com a prática, com o passar do tempo. Então, foi um processo muito natural e orgânico também por isso, né? Porque a gente tá mais atento a quem quer mesmo quem tá na pilha de se transformar mesmo.
Flagra: Além do lançamento do EP, o projeto também forma os jovens para lidar com o mercado da música? Para que saibam como funcionam as relações e quais maneiras possíveis de monetizar a própria arte de forma independente para além da relação com vocês?
Mathiolo: A nossa ideia era realmente usar a música como transformação e dar uma fita demo para eles irem para o mercado e não só contar a história dos sonhos, é ter algo palpável. Só que a gente viu que tinha uma necessidade de fazer um trabalho maior, não só dar esse arquivo para eles porque senão eles vão ficar muito solto no mercado e a nossa intenção não era essa. Aí que começou a desenvolver esse outro lado de estar lançando eles também, mas mais projetando eles para o mercado, sendo uma vitrine, sabe? Fazendo essa transição entre o sistema penitenciário com a rua.
MZ: É maneiro porque como trabalhamos há muito tempo nesse mercado, entendemos que não tem uma fórmula para acertar. Sempre nós deixamos muito claro pra eles: não estamos prometendo a vocês o sucesso. Nos comprometemos em passar o que sabemos sobre música, sobre o mercado pra dentro da visão e do caminho que eles mesmo vão traçar, para estarem melhor informados do que a gente tava quando começamos essa trajetória. Falamos sobre Abramus, sobre a UBC, as associações de compositores que as pessoas precisam estar filiadas para receber seu direito autoral. Damos uma passada por cima do que é o digital, essas coisas. Só que, principalmente, a gente tenta despertar neles essa curiosidade para o entendimento, para eles buscarem essas informações a cada vez. A nossa preocupação maior acho que sempre foi isso, de capacitar eles até aparecer amanhã eles falarem”Galera, eu não quero mais gravar com o ADT, entendeu?” E, show, que você saiba tudo que a gente teve pra passar pra você e que a gente possa trazer novos jovens e continuar essa corrente infinita, porque infelizmente, jovens privados de liberdade não vai faltar, né?