ALEATORIAMENTE: a Divina Comédia caótica do Ogi

Vez ou outra recebo guias na minha DM. Minhas primeiras orelhadas em Aleatoriamente, de Rodrigo Ogi, vieram em estágios muito iniciais do projeto. Vovô me mandava esparsamente algumas músicas, apenas sua voz gravada em celular e uma bateria para demarcar a métrica pretendida. Logo ouvia, afinal não são mensagens que se ignore. Acredito ter entrado em contato direto não apenas com um material bruto, mas também essencialmente poderoso para o projeto. Estava ali, direto da fonte, e eu o sorvi com a certeza de que algo grande estava por vir.

Foto: Ênio Cézar (@enio.cesar)

Lembro de uma sede semelhante quando, numa madrugada de pandemia, ouvi De Kenner e, logo em seguida, respondi Fabrício com dois apontamentos: isso tá muito bom — poderia tocar no furacão 2000 —, mas tem que acertar essas notas no refrão antes de dropar. Felizmente corrigiram. Devo ter ouvido boa parte de Baile antes do lançamento, na verdade, se bem me lembro, Baile e Outro Rolê, aleatoriamente, eram tudo uma coisa só. De todo modo, me fascina poder espiar por trás das cortinas e, humildemente, dar uma opinião ou outra sobre o espetáculo que está sendo montado.

Nessas, às vezes vemos algumas cenas que são descartadas, algo normal no processo artístico. Lembro de uma faixa maravilhosa em que Vovô rimava uma final de Libertadores numa espécie de narração-futebolística-storyteller. Ótima track. Cortada. Espero que um dia esse gol saia e vocês possam comemorar junto comigo. De todo modo, ainda existe muito a celebrar, pois, se as sobras já eram boas, o que está na pista não é nada menos que isso.

Em resumo, Aleatoriamente é uma Divina Comédia caótica de Ogi. O texto pode ficar por aqui, te dei uma chave para interpretar algumas das camadas (ou círculos), use-a. De agora  em diante, escrevo reflexões como se estivesse falando sozinho, não repare.

Anjos e demônios surgem aos montes, nomeados, metaforizados e metamorfizados. Mas já aviso que Don L, a lá Glauber Rocha, bem que nos adverte sobre o caminho não estar nem em um nem em outro (inclusive me interessa muito essas participações paradigmáticas que o MC vem fazendo quando convidado em projetos alheios). 

Eu pergunto por você, que finaliza a tragédia amorosa da tracklist, é o ponto alto do álbum e representa bem essa atmosfera. A track nos é apresentada em uma melodia cativante de Kiko Dinucci, com um órgão maravilhoso, um coral ascendente e um gingado escolhido a dedo como contrapeso da atmosfera pia, afinal temos o Último Bom Malandro na track. Ouvi a faixa sem ele, inclusive, e já tinha potencial; com o seu feat, mais ainda. Falo de forte candidata a premiações. 

Como ia dizendo, a despeito dos avisos de Don, o personagem da trama (o nosso Dante), lida com figuras divinas angelicais e demoníacas para encontrar sua amada (a nossa Beatrice). Mesmo vencendo o Diabo, o herói se vê perdido. E sem coração pois, como se não bastasse, antes fora enganado pelo Cupido também. 

Foto: Ênio Cézar (@enio.cesar)

Aí que tá, “Os humanos são rascunhos que eu peguei no lixo, coloquei na terra só por um capricho”, diz o deus oginiano. Seguindo esse raciocínio, nada mais justo então do que serem facilmente enganados e passados para traz por todos: anjos, demônios e até mesmo pelos seus iguais. Paradoxalmente, mesmo dando voz a seres divinos, mais do que nunca, Ogi tenta nos mostrar as fragilidades, falhas e obscuridades da constituição humana, principalmente quando à beira do precipício urbano, um lugar comum de sua obra, palco de histórias desenvolvidas com extrema maestria.

Mesclado à fantasia, transborda, agora na atmosfera do real, o brutalismo (aqui, uso um empréstimo literário que não se encaixa perfeitamente, mas ainda é bastante válido) — e não falo apenas dos visualizers do projeto, basta ir além do que 90% dos ouvintes de raps fazem hoje em dia e ouvir as rimas. Quando lança seu olhar de contista ao caráter humano, a exemplo de grandes nomes da Literatura Brasileira, como o controverso Rubem Fonseca, João Antônio, Patrícia Melo e alguns outros, Ogi compõe narrativas povoadas por desvalidos, por aqueles que vivem à margem da urbe; que contam até 100 para não surtar e explodir a panela de pressão dentro de um ônibus lotado em sua Rotina, que buscam Aleatoriamente no algoritmo das redes sociais o anestésico que evita uma realidade cruel, o qual, por sua vez, desencadeia como droga uma cascata de alucinações confortáveis e alienantes na mesma medida. 

Dante, com a ajuda do espírito de Virgílio, descreve o inferno de acordo com o imaginário coletivo de uma Idade Média já decadente, Ogi faz o mesmo para o Brasil de 2023: apesar de pitadas fantasiosas que podem ser entendidas como alegorias, o inferno está aqui, em nossa própria dimensão. O calor extremo é apenas um dos recursos de verossimilhança.

Foto: Ênio Cézar (@enio.cesar)

Tome por exemplo o personagem João Queiroz, que vê morte e tortura ao seu redor, com seus iguais, mesmo que não os enxergue como tal, e passivamente espera até chegar a sua vez, quando já é tarde demais para súplicas de Valha-me.

Ou ainda seu quase homônimo (e anfíbio, novamente alegorias) Joaquim que, mesmo escapando da morte, ameaçadora tanto no espectro divino quanto no real, (mais uma vez o realismo com pitadas de fantasia), finaliza a sua história com o reforço determinístico do seu destino e de tantos outros iguais a ele que compõem o cardume da cidade cinzenta: “a brasa continua acesa e uma hora você vem pra frigideira”.

Ao final, em meio a escatologias e violência crua, Ogi, da mesma forma que surge, some, aleatoriamente. O diretor corta segundos antes de um final trágico (Ufa!) e menciona Rodrigo nominalmente, ou seja, não estamos mais no nível narrativo das personagens. Além disso, o convoca para a próxima cena – não me esqueço que Dante escreveu o seu épico em 3 partes. 

Rodrigo Ogi e Kiko Donucci fazem algo admirável para o rap atualmente: ousam. Da mesma forma que FBC e VHOOR fizeram com Baile em 2021. Como disse, vez ou outra me mandam músicas na DM, às vezes são grandes trabalhos que dão gosto de ouvir, às vezes são só trappers inseguros. Acontece.

Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Previous Article

Faixa Preta Festival traz elementos do Hip Hop para o sambódromo e engrandece a diversidade carioca

Next Article

De Nova York para São Paulo: Como PLK incorporou Illmatic em seu EP

Related Posts