Dia 15 de novembro de 2023 ficará para sempre marcado como aquele que amanheceu com “Espero que entendam”, a diss track de Ebony, com produção de Larinhx, e que vários MCs em evidência serviram de alvo para carioca.
Rapidamente as redes sociais se inundaram de críticas, elogios e reclamações. Alguns em defesa da Ebony, outros prontos para dizer que ela não fez nada demais e ainda haveria aqueles prontos para defender a honra dos MCs citados na faixa.
Antes de oferecer aqui a minha opinião sincera sobre a faixa, é importante que fique bastante explícito o meu carinho pela Ebony e todos os citados em seus versos. Como um aficcionado pelo rap, busco consumir essa arte e contribuir um pouco para as discussões. Vejo aqui uma oportunidade perfeita para falarmos de forma sincera sobre algumas inquietações que acredito não serem apenas minhas.
Para além do sentido literal que muitas das rimas em uma primeira impressão podem causar, tem muita informação implícita que cabe uma atenção especial, que talvez acabem passando despercebidas dos ouvintes que não conhecem muito dos trabalhos dos artistas citados e da própria Ebony.
Primeiro, os cariocas
Ebony começa abrindo a faixa com um diálogo sobre a inteligência dos homens, estabelecendo sua premissa principal: os homens que fazem rap são vangloriados, muitas vezes sem fazer nada demais.
A carioca inicia de forma muito esperta a faixa citando Kendrick Lamar, conhecido pela maestria em sua arte, mas também pelo famoso verso em “Control” do Big Sean, faixa em que o estadunidense se consagrou como rei de Nova Iorque, mesmo sendo do outro literal do país, ele jurou de morte (sentido figurado) os principais MCs da época, como Drake, J Cole, Eminem, Pusha T, Mac Miller e os próprios MCs da faixa, Big Sean e Jay Electronica. Guardem bem essa ideia que será importante mais para frente.
Voltando para faixa, ela continua se colocando no centro do palco e de certa forma elogia Bk’, o único MC que saiu quase sem ferimentos ao ser colocado como mentor da MC. Dando sequência ela começa uma série de ataques para Filipe Ret, L7nnon, Puterrier, Borges, Orochi, Kyan, Baco, Major RD e Djonga.
Amo BK porque ele é como um pai pra mim
Eu dou comida e troco a fralda, ele já tá velhin’
Foi meu mentor, o meu padrinho e investiu em mim
Foi pro estúdio de andador pra gravar camarim
Com um pouco mais de trabalho na produção e no entrega, a faixa se encaixaria perfeitamente no seu disco Terapia, lançado a pouco mais de um mês antes desta diss. Neste projeto a artista explora de forma exagerada e bem humorada seus distúrbios mentais, tocando em assuntos sérios e fazendo com que cada música seja um passo nessa terapia pessoal.
Mas voltando ao ponto principal, todos os artistas citados possuem sucessos, comerciais e críticos, mas é inegável que possuem problemas, muitos deles apontados de forma direta e indireta pela Ebony.
Ret é uma dos artistas mais bem pagos do rap, possui inúmeros Hits, lota shows, mas já faz algum tempo que não produz algo com qualidade parecida com seus primeiros discos. Ebony ainda dá créditos a faixa “Santo Amaro”, um de seus sucessos recentes junto com MC Maneirinho. O ponto aqui é que a arte do carioca vive uma crise existencial e de identidade. Embora existam ótimas composições, a originalidade presente nos seus primeiro trabalhos foram substituídas por produções que seguem as tendências do momento. Mesmo que em alguns momentos Ret lance músicas muito boas, ele está longe daquele jovem que fumava um na praia e falava versava devaneios retianos, como a Ebony chama.
L7 é um fenômeno, principalmente entre os jovens. O artista tem fechado parcerias com marcas, participações com artistas de diversos gêneros e estado presente em locais que o rap dificilmente chegaria a alguns anos atrás, como desfiles de moda e aberturas de eventos com projeção internacional. Porém, em suas músicas, L7nnon dificilmente toca em pontos importantes e constantemente apontados pelos seus fãs e críticos, como a sua declaração étnico-racial. Já faz algum tempo, por exemplo, que nos limitamos a ouvir o quanto o MC é rico e faz dinheiro, o que por enquanto ainda consegue fazer com certa originalidade e humor, mas até quando iremos deixar isso passar batido? Eu sinceramente não sei.
E o L7 que me espere porque, porra, mano
Ainda nem me decidi se tu é preto ou branco
O mais recente fenômeno carioca Puterrier tem sua sexualidade questionada por insistir em falar de fetiches. Borges não recebe muita atenção da Ebony, sendo quase ignorado na faixa. Orochi é questionado sobre sua polêmica, falar das deusas africanas em suas faixas enquanto namora uma mulher branca. Todos os três artistas possuem faixas que se tornaram hits e vendem shows com facilidade, mas nenhum projeto de verdadeiro destaque na cena. Apesar disso, adoram se vangloriar como os melhores.
Falei de cariocas, tô jogando em casa
Pra ter mais chance de trombar com eles cara a cara
O dono da Rock Danger, Major RD, também é citado no último verso. O artista possui uma das apresentações ao vivo mais marcantes que se pode assistir hoje no Brasil. Sua entrega nos palcos é algo singular. Ademais, a muito tempo que seus fãs apontam a falta de parcerias com mulheres. Ebony cutuca a questão aqui de forma implícita, chamando atenção para suas parcerias constantes com homens.
Ninguém está salvo
Kyan, artista da baixada santista possui músicas muito boas, principalmente por estar sempre acompanhado de um dos melhores produtores dos últimos anos, Mu540. Mas de fato, hoje, seu namoro com Tasha tem feito mais barulho que sua música – e eu nem acho isso ruim, mas o MC não tem atendido as expectativas criadas neste início de sua carreira.
Baco, que já foi conhecido por participar de uma diss “Sulicídio”, que de forma similar atacou diversos MC importantes do sudeste, é um dos artistas nacionais com uma discografia invejável, que trata inclusive da questão racial de forma bastante explícita e emocional. De forma infeliz, um de seus maiores sucessos recentes é com a Luiza Sonza, uma artista que possui um caso de racismo amplamente discutido nas redes sociais devido aos estranhos contornos legais que ocorreram neste processo, ao que tudo indica realizados para evitar causar danos na carreira da cantora.
Soube que o Baco disse que eu sou superestimada por ser sudestina
Mas me botou nos melhores pra eu ver a rotina
No início achei que era onda
Aí ele foi e fez um feat. com a Luísa Sonza
Porra, vida, por favor se manca, sustenta tua banca
Eu nem sou tua namorada e me trocou por branca
Por fim, Djonga, um dos MCs colocados como um dos melhores de sua geração, é atacado pela performance de rimas. Há muito tempo notamos uma queda de qualidade nos projetos apresentados pelo mineiro. O que antes era quase que tiro certeiro, hoje se faz em lapsos das provocações inteligentes apresentadas em seus primeiros sons. Podemos dizer que Djonha faz música ruim? Depende do ouvinte, mas ainda assim é inegável que está longe de encantar da mesma maneira que seus versos nos tempos de Heresia e O Menino Que Queria Ser Deus.
O que vale é a autocrítica
Ebony fecha a faixa com um áudio comentando do seu objetivo na música, novamente reforçando que não está atacando diretamente os MCs. Sua crítica é mais para o estado da cena, que endeusa estes homens e deixa de valorizar artistas como ela.
Cara, mas papo reto
Porque tipo assim
A galera leva pro pessoal e acha que eu tô falando das pessoas
Mas não é, tá ligado? Eles não ouvem
E tipo assim: “Ai, vai perder público”
Que público? Os bofe não escuta a gente, mano!
Tá ligado? E foda-se também
Quem tiver que entender, vai entender
Particularmente, já venho dizendo a algum tempo que as mulheres têm produzido alguns dos discos mais criativos e originais nos últimos anos. Ebony com certeza é uma dessas artistas. Basta ver como Terapia não ganhou a atenção que deveria na cena, um disco com produções diferentes da que estão em destaque na indústria, fugindo das fórmulas fáceis do trap e do drill, e com uma caneta inspirada carioca.
Nas redes sociais, rapidamente temos diversos pontos e críticas relevantes sobre a faixa. Tais como o apagamento das artistas trans, principalmente pelas linhas genitalistas da Ebony. Outros colocam que em pleno 2023 uma diss não faz sentido.
Acredito que antes de mais nada é importante entender o objetivo com “Espero que Entendem”. Esta é a forma que a artista encontrou de chamar atenção para o seu trabalho, diante de um contexto no qual o rap atual, embora faça muito sucesso, ainda tenha questões importantes em que precisam de avanços, em especial a insistência nos mesmos artistas, mesmo quando inconsistentes. Seus versos não devem ser levados no sentido literal, assim como entendemos que Kendrick em “Control” não queria matar seus rivais.
Ainda são muito iniciais os progressos com relação às questões de gênero e sexualidade nas letras e na projeção dos artistas da cena, até porque o público tem mudado. Cabe a nós, que acompanhamos, apontar essas questões e ajudar não só os fãs, mas os artistas a ficarem ligados com estas temáticas.
E sobre diss, vale lembrar que desde os primórdios do rap e da cultura Hip Hop, a competitividade sempre esteve presente. Alguns dos momentos mais memoráveis desse meio século da cultura são os capítulos em que MCs se digladiam pela atenção dos fãs. Quando Ebony coloca “Essa é a minha contribuição pros 50 anos de hiphop.” na descrição da faixa no Youtube, ela está realmente escrevendo uma seção importante na história do rap nacional, revisitando um de seus aspectos mais fundamentais.
Espero que assim como outras diss, esta faça a cena mudar de alguma forma. E para os companheiros que foram citados, não caiam na armadilha de responder de forma machista e sexista, ou desmerecer o que ela fez em “Espero que entendam”. Vale mais fazer a autocrítica e entender que todos tem sua chance de sentar no trono. E essa é a vez da Ebony.