O sample, muito mais do que apenas recortar parte ou elementos de músicas antigas para serem incorporadas em outras, é também uma forma de ressignificar estes elementos para um contexto completamente diferente.
Uma das melhores histórias do Rodrigo Ogi, não só de sua própria discografia, mas do rap nacional em geral, é contada em “A Vaga”. Esta faixa é uma das músicas que compõem o disco Crônicas da Cidade Cinza (2011), um trabalho que descreve a cidade de São Paulo de uma maneira única. Crônicas é considerado por muitos fãs de rap um verdadeiro clássico nacional devido a forma como Ogi construiu um universo em em suas rimas, apresentando-as de forma única, explorando samples, usando diferentes vozes e criando personagens extremamente cativantes.
“A Vaga” é uma faixa inspirada na realidade do trabalhador paulista. Em 2011, quando foi lançada, o desemprego no estado era de 10,5% na cidade de São Paulo. Porém, no mesmo ano o índice de desemprego foi de 4,7% para todo país. Desta maneira, esta é uma faixa que facilmente toca o ouvinte, principalmente o jovem adulto que busca sua primeira experiência profissional – dos 1,7 milhões de desempregados em São Paulo, em 2019, 40% são jovens entre 16 e 24 anos.
Além disso, quando se trata de “A Vaga”, Ogi demonstra ter um carinho imenso pela faixa. Isso fica evidente em Estamos Vivos do KL Jay, onde o MC paulista demonstra empolgação ao falar dessa música, inclusive afirmando que esta música é uma de suas favoritas do Crônicas.
Outra história que sobre canção é que ela aproximou o MC paulista do Black Alien, um dos artistas mais respeitados do rap nacional e um que o próprio Vovô revela ter um imenso apreço:
“Eu já admirava ele [Black Alien] pra caramba. Já tinha encontrado ele algumas vezes na rua, mas ele não sabia ainda quem eu era, eu acho. Eu também não tinha lançado nada. Um dia eu tava no estúdio do Stereodubs, no começo de 2012 se não me engano, depois que o Crônicas tinha saído. Aí ele colou [no estúdio], porque estava fazendo umas paradas com os caras, o LX, Leo Grijó e tal. (…) ele colou cantando “A Vaga” quando me viu. Eu desacreditei, mano. Daí pra frente a gente virou amigo. E trocamos várias ideias. Fiquei emocionado de ver aquilo. Um cara que eu cantava as músicas, que eu escutava direto. Um cara que eu sou fã, né? Cantando uma parada [minha], foi muito loco. (…) E o Black Alien é um cara que sempre me cita. Sempre que pode, ele indica minha música para alguém. Fala de mim nas entrevistas que ele faz. Eu tenho uma grande consideração por ele”, disse Ogi.
Além disso, outro fator que torna a faixa tão popular é a referência a uma das músicas mais conhecidas do Racionais MCs, “Diário de um Detento”. A canção do grupo paulista narra a experiência de um presidiário e teve o videoclipe gravado dentro do Carandiru. Mauricio Eça, diretor do videoclipe, diz que Mano Brown queria que a gravação não fosse simulada, ideia que o diretor só compreendeu quando entrou e pode observar situações dentro do presídio.
A conexão entre as duas histórias, embora sutil, não surge apenas como uma homenagem de Rodrigo Ogi para um dos seus grupos de rap favorito, é também uma saudação a um dos elementos mais importantes do Hip Hop, a arte do sample.
O sample, muito mais do que apenas recortar parte ou elementos de músicas antigas para serem incorporadas em outras, é também uma forma de ressignificar estes elementos para um contexto completamente diferente. Neste sentido, Ogi tem se tornado uma referência em estabelecer estas relações nos mais diferentes níveis da sua música.
Em busca da vaga
Brown, em “Diário de um Detento” descreve o cotidiano de um detento e o que passa em sua mente de uma forma única. De maneira similar a forma como Mano Brown narra a sua história, Ogi fala em “A Vaga” sobre a incerteza que a falta de emprego traz para um cidadão, na perspectiva de um personagem que caracteriza muito bem o cidadão que vive na cidade de São Paulo.
Existe um paralelo entre as faixas, se olharmos para a forma com que cada uma é construída, principalmente se nos atentarmos para a quantidade de detalhes e a maneira com que as histórias se desenvolvem. Embora sejam situações completamente diferentes, as duas faixas passam uma sensação íntima para os ouvintes, fazendo com que haja uma imersão no que é contado, o que transmite uma sensação de angústia na experiência relatada pelos personagens da história.
Saí à captura num ônibus lotado
Às 5 da matina, num dia acinzentado
Eu tava precisando de uma remuneração
Sonhava em superar os meus dias de cão
No decorrer do dia apresentado na faixa, vemos as inúmeras possibilidades que o personagem desempregado encontra para “se dar bem”. As tentações em sua maioria desleais ou ilegais fazem a consciência do personagem descrito pelo MC pesar.
Numa bolsa aberta eu vejo um pote de Danone
E um CD do Ramones, também um iPhone
Quando a minazinha moscou, mão coçou
Consciência me alertou com trombones
Dei sinal, desisti, logo refleti
Tenho fé, um café vou tomar ali
Um pingado e um pão na chapa pedi
Nem pensei, debandei, não paguei o que consumi
Novamente a consciência foi sem clemência
Me fez consertar um ato de inconsequência
Retornei pra pagar dois reais
Fiquei sem um tostão mas pude seguir em paz
A riqueza nos detalhes das situações encontradas na sequência de rimas contribui para criação uma espécie de filme do que ocorre com o personagem e, mais do que isso, coloca o ouvinte no papel do cidadão que vive as aflições do desemprego.
O paralelo com “Diário de um Detento”
O trecho da canção dos Racionais aparece brevemente como um sample no refrão, mas é o suficiente para marcar e ditar o tom da faixa do Ogi. É como se, no seu subconsciente, o cidadão estivesse lembrando a todo momento do que ocorre na história de “Diário de um Detento”, como um trecho de uma música que não sai da sua cabeça.
O personagem teme que as consequências de seus atos possam ser maiores, agravando ainda mais a condição financeira em que está. Embora seja apenas uma linha da faixa do grupo paulista, a simples frase “A vaga está lá esperando você” é o necessário para dar um duplo sentido a história, a vaga pode ser a de presídio, caso cidadão venha a cometer um crime, ou a conquista da vaga de um emprego. Isso faz com que, num primeiro momento, o refrão passe a ideia de ser um alerta sobre as oportunidades ao mesmo tempo que serve como um conselho, caso o personagem venha a fazer algo ruim.
Esse é o teste pra você provar o seu valor
Existirão atalhos por onde for
Preste atenção no que o mundão lhe oferecer
A vaga tá lá esperando você
Esse é o teste pra você provar o seu valor
Sei que existirão atalhos por onde for
Então, amigo, é só você saber escolher
A vaga tá lá esperando você
Seguindo o rumo da história, o sentido que se sobressai é o da vaga de emprego, tão desejada e sonhada pelo personagem. Desta forma, quem já procurou emprego sabe que não basta boa vontade ou mesmo formação adequada, um dos pesadelos de qualquer pessoa que procura uma vaga é a exigência de experiência.
Na Barão de Itapetininga, Sol na moringa
Procuro vagas de emprego, nenhuma vinga
As vagas são pra soldador, empacotador
Exigem muita experiência onde quer que for
Essa dura realidade é também um dos motivos que podem levar o personagem a aceitar ofertas que forneçam uma solução fácil para sua situação. É o que é descrito na sequência da música, na qual Ogi relata o encontro com o seu “parceiro”.
Trombo um parceiro que também tava na correria
Ele me diz que tinha um plano pra salvar o dia
Esquema no Anhangabaú pra nóiz passar bem
Vamo encher nosso baú com notas de cem
Mas assim como já havia demonstrado no primeiro verso da música, o cidadão prefere a paz consigo mesmo ao caminho mais fácil. A lição que a história de “A Vaga” fornece é também lembrete a importância de histórias como as contadas em “Diário de Um Detento”. Conhecer, mesmo que a partir de uma música, uma outra perspectiva de vida nos permite tomar as decisões tendo consciência das possíveis consequências, ainda mais se pensarmos que a maioria das faixas de rap são baseadas em experiências vividas e observadas pelos artistas que as compõe.
Mas o malandro quando é esperto demais cai
Só peço pro pai paz, e a zica que atrai sai
Tô no limite mas recuso o convite
Peço desculpas por não estar no apetite, bye bye
A arte do sample e o intertexto
A essa altura da música, o ouvinte está imerso na situação e é então que lhe é fornecido um resultado inusitado. Tudo indicava que o limite seria ultrapassado, o que levaria o personagem a ocupar uma a vaga em um presídio, dado o contexto que a frase do Racionais no refrão fornece.
A produção do DJ Zala, com sample do dueto francês de Jane Birkin & Serge Gainsburg, em “Jane B.” (1969), também lembra a da faixa do grupo paulista, criando uma atmosfera que relaciona as duas a partir da memória, de tal forma que esta relação é fortalecida, caso o ouvinte já tenha ouvido a faixa que inspira o refrão.
O recurso do sample remete ao conceito de intertextualidade, a sobreposição duas histórias, de tal forma que aquela que serve de inspiração cria uma camada de complexidade para os sentidos da nova história. Para quem acompanha a cena do rap, não é incomum encontrar faixas do mesmo artista ou entre artista, principalmente aqueles que atravessam as gerações, que cria inúmeras camadas que enriquecem os significados das músicas a partir do uso do sample. A arte de samplear no Hip Hop permite isso e reinventa inúmeras frases e músicas antigas.
A própria faixa do Racionais usada em “A Vaga”, possui dois samples que preenchem sua instrumental. “Diário de Um Detento” usa elementos das faixas “Mother’s Son” (1974) do Curtis Mayfild e “Easin’ In” (1973) do Edwin Starr, duas músicas com um clima completamente diferente da música do grupo paulista. Estes dois samples, embora tenham um clima mais dançante, voltado para o soul, R&B e jazz dos anos 70, são duas canções que lançam um olhar sobre a malandragem das ruas, quase num tom de denúncia. Em “Diário de Um Detento” essa denúncia é escancarada, que não está sutilmente escondida nas entrelinhas da faixa.
Muitas vezes os samples transmitem os sentimentos que as música expressam. É o que acontece em “A Vaga”, na composição do Rodrigo Ogi e produção do DJ Zala, que funcionam como catalisadores do sentimento fornecido pela frase do Mano Brown. A “terceira geração” da música apontando para outro problema completamente que também é enfrentado pelo morador da periferia, o desemprego, mais especificamente na cidade de São Paulo. Isso revela uma relação tênue entre a faixa do Ogi com a faixa dos Racionais que, embora apresentem situações completamente diferentes, refletem sobre uma realidade das pessoas marginalizadas pela sociedade.
Na faixa do Crônicas, a melancolia que “Diário de Um Detento” passa é substituída por uma sensação de correria em “A Vaga”, que no contexto do disco se sobressai como um dos elementos que caracterizam o trabalhador da cidade de São Paulo. Essa mudança também permite uma associação com a sorte ou a fé na letra, fazendo com que não apenas o contexto seja responsável pelo resultado da história. A leve mudança na frase que inspira a música e a maneira como Ogi a declara passam a sensação de alívio sentida pelo personagem.
Conto com a sorte pra escapar de algo tão macabro
Acho um anúncio para limpador de candelabro
Vou ao local e ouço a moça me dizer:
A vaga estava esperando você
O refrão após o desfecho fica mais proeminente para o tom de um conselho, como se Ogi quebrasse a quarta parede e se dirigisse a quem escuta a faixa. O trecho do sample do “Diário de um Detento” também assume o da vaga de emprego.
Esse é o teste pra você provar o seu valor
Existirão atalhos por onde for
Preste atenção no que o mundão lhe oferecer
A vaga tá lá esperando você
Esse é o teste pra você provar o seu valor
Sei que existirão atalhos por onde for
Então, amigo, é só você saber escolher
A vaga tá lá esperando você
Dentro deste universo criado por Ogi em Crônicas da Cidade Cinza, fica evidente o carinho do MC pela cidade retratado nas diversas e inusitadas histórias do disco. Este carinho acaba refletindo na paixão dos fãs, sejam ouvintes ou artistas, pela faixa “A Vaga”, que não só retrata um contexto e uma realidade que muitos podem identificar ou se identificar, mas também que podem reconhecer como uma verdadeira materialização da essência da cultura Hip Hop, o sample no rap.
Com certeza, esta não foi a primeira e nem a última vez que Rodrigo Ogi precisamente captou um sentimento a partir de suas histórias e do seu ouvido apurado para produção. Certamente, muitos outros artistas de rap, nacional e internacional, também estabeleceram e continuam a estabelecer essas relações entre gerações musicais através do sample. Mas não deixamos de nos impressionar com os sentimentos que algumas faixas icônicas podem despertar em nós.