Entre o altar de si mesma e o mercado: o novo testamento de AJuliaCosta

Rapper e empreendedora, nascida e criada em Mogi das Cruzes, ela lançou recentemente o disco Novo Testamento. Segundo a artista, o trabalho se conecta a seus lançamentos anteriores pela criticidade, mas se diferencia pelo amadurecimento do processo criativo, em que a artista afirma ter encontrado mais liberdade. São dez faixas e um interlúdio que reafirmam temas já conhecidos em sua obra: relacionamentos, amizade, autoestima e o enfrentamento das barreiras impostas a um corpo negro e periférico que ocupa espaço no mercado.

A introdução do trabalho é marcada por diferentes entonações do questionamento sobre “o que é esse novo testamento?”, seguido da explicação da própria rapper a respeito da expressão: “O novo não tememos, recusamos o mesmo / Apreciamos o tempo, aprendemos com a vida / Ninguém aqui tá de touca, nem vai morrer falida / Nem se vender por pouco, nem se render à merda.”

Já na segunda faixa, intitulada Toc Toc Toc, AJulia explicita o seu propósito com o novo trabalho: “Eu vim cumprir a promessa de fazer uma rima séria e um trabalho consistente.” Em seguida, apresenta as leis do seu ‘Novo Testamento’: “Primeiro, segura a responsa que essa porra é só sua / Tem que ter as palavras alinhadas na conduta / Não duvida do próximo e nem da caminhada / E quando ganhar grana, que você não vire um mala / Sou fruto dos que debochava / Hoje esse puto volta chorando pra casa.”

Imediatamente, percebemos que o posicionamento da artista é compreender de que forma é possível se manter no controle da própria narrativa e construir uma carreira profissional em busca da ascensão social sem precisar negar o lugar de onde veio e os próprios princípios. Embora seja natural que haja mudanças de percepção sobre determinadas situações quando se acessam outras realidades e se vivenciam novos contextos, a maneira como isso é expresso ao público e a forma como se passa a se relacionar com as pessoas e os lugares que serviram como base para a construção de uma trajetória é o que revela a ética do discurso.

Na terceira faixa, intitulada ‘Quero Saber’, ajulia formula uma série de questionamentos que buscam compreender se quem se conecta com sua arte e com sua pessoa o faz pelo que ela se tornou midiaticamente ou por quem é em essência: “Se no show não existisse plateia, somente você, será que você iria? / Se tivesse que recomeçar de onde eu comecei (aham), você começaria? / Se essas luzes todas se apagassem, a cortina do palco fechasse / Você visse minha real face, será que você ainda ficaria? / Se você visse sem grana, sem nada, na mesma quebrada, você colaria? / Vamos ver sua real intenção, se eu falasse que eu vou jogar tudo pra cima / Sem estado, sem fama, sem nada, não fingir que é o que você gosta (…).

Numa sociedade em que as interações são pautadas pelo status e pela imagem, ainda mais fortalecidas pelo advento das redes sociais, as pessoas se tornam descartáveis à medida que deixam de ser úteis para determinado meio. Para quem busca relações genuínas, ainda que em meio à lógica do mercado, se faz cada vez mais evidente a intenção de quem se aproxima. E, diante disso, é imprescindível fazer escolhas conscientes sobre o que se permite vivenciar e ao que se decide se submeter.

É perceptível que ela vem se consolidando como uma referência importante para seu público, majoritariamente formado por mulheres. Seja por falar de forma direta e aberta sobre experiências coletivas que se manifestam na individualidade, seja por gerir o próprio negócio.  

Na história, os caminhos para as mulheres no rap nacional foram abertos pelas mãos de Sharylaine, Rúbia RPW, Kmilla CDD, Dina Di, Negra Li, Cris SNJ, entre outras. Seja pela abordagem incisiva de temas sociais e de realidades periféricas em suas letras, seja pela necessidade de se “masculinizar” para obter respeito no meio da cultura hip-hop, em uma época em que os discursos feministas ainda não estavam em tanta evidência, essas artistas pavimentaram a estrada em um espaço historicamente masculino. Muitas, no entanto, não tiveram o devido reconhecimento na grande mídia, algo que a nova geração, que AjuliaCosta faz parte, já consegue alcançar com maior facilidade, contado as suas vivências a partir da própria perspectiva. 

Um ponto legal de se analisar é a própria capa do disco, onde a artista aparece de salto e minissaia, coisa incomum nos tempos remotos, e além disso, ela carrega a bandeira em um cenário destruído que lembra um ambiente pós guerra, o que, metaforicamente, o disco apresenta sobre o mercado como um campo de disputa.

As relações sociais são o fio condutor do disco, algo perceptível ao longo das faixas. Embora possua uma comunicação bem amarrada, o trabalho não deixa totalmente explícito qual é a mudança que fundamenta a nova fase da artista, já que desde seus primeiros lançamentos ela se mostra como uma mulher consciente, que se posiciona, que possui ambição e postura. Se existe novidade, ela está menos em uma ruptura do que havia sido realizado anteriormente e mais em um pacto reforçado com si mesma e a própria trajetória.

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