Rodrigo Ogi é um dos artistas sobre o qual se tem uma expectativa muito grande, isso por conta de uma discografia impecável e um envolvimento com a cultura que começou lá nos anos 90 quando ainda era pixador.
O MC paulista é autor de ‘Crônicas da Cidade Cinza’ (2009) e ‘RÁ!’ (2015), dois discos muito aclamados pela crítica e pelos fãs — para alguns inclusive são obras com status de clássicos.
Por estar a tanto tempo na cena, foi possível acompanhar sua evolução não só como músico, mas também como indivíduo.
Foi a partir de sua música que, por exemplo, acompanhamos ele se tornar pai, o que aparece em seu EP ‘Pé no Chão’ (2017). Não à toa Ogi é de fato um “paizão” inclusive no rap, onde tem por característica agregar artistas.
Essa breve introdução, só reforça o que já foi extensamente documentado pelas mídias e em suas entrevistas, seu apreço pelo Hip-Hop. E por conta disso, esse “hiato” sem discos criou para muitos uma expectativa muito grande.
São 8 anos desde ‘RÁ!’, 6 anos de seu último projeto, o EP ‘Pé no Chão’. ‘ALEATORIAMENTE’ tem o peso de extravasar os anos e anos quem os fãs de Ogi ficaram sem nenhuma novidade no formato longo.
Nós da Flagra tivemos a oportunidade de ouvir o disco alguns dias antes do seu lançamento e dois dos nossos membros da Equipe irão apresentar suas impressões iniciais.
Rodrigo Ogi: Um contador de histórias com um olhar único
Para além das histórias que este novo disco do Ogi proporciona, uma das características que logo me chamou atenção ao ouvi-lo pelas primeiras vezes foi as conexões que estas histórias fazem umas com as outras.
Como bem observado pelo meu colega Matheus, a capa lembra muito as fotografias de Henri Cartier-Bresson, conhecido por buscar capturar momentos na sua espontaneidade e pelo uso de linhas contínuas que formam molduras improváveis. Enio Cézar captura o artista pensando, com o olhar no horizonte, enquanto ao fundo temos uma estrutura com diversos caminhos, o que quase como uma poesia, descreve a mente de um cronista observador que busca na confusão de seus pensamentos um sentido para suas infinitas histórias. O título ‘ALEATORIAMENTE’ demonstra a agonia do pensamento que vai na direção que bem entender.
Em termos de produção, as faixas lembram composições de trilhas sonoras de horror, suspense e drama, não contando apenas histórias, mas produzindo atmosferas que geram expectativas e transmitem sentimento, E no caso deste disco são alcançadas principalmente pelos instrumentos e efeitos.
É o acontece com o ritmo imprimido em “Rotina”, “Aleatoriamente”, “Chegou sua Vez” e “Valha-me”, faixas que pedem uma sensação de velocidade e iminência por conta das temáticas. As duas primeiras para contrastar a ideia de uniformidade e confusão da rotina do dia a dia, enquanto que as seguintes trazem uma temática que envolve a consequência dos atos dos personagens, o julgamento ou a condenação. Neste sentido, Kiko Dinucci foi genial, traduziu muito bem a intenção do artista com suas histórias.
Esta produção inclusive combina muito com a interpretação dramática do Ogi, que muitas vezes usa sua voz para complementar a letra e as produções em si. É o que acontece em “Eu Mudei Para Esse Prédio”, quando o artista personifica diversos sentimentos, ou em “Cupido”, quando em diversos momentos cantados podemos sentir a agonia do eu-lírico em buscar sua amada. talvez em “Peixe” isso é ainda mais evidente — a faixa faz uma entrega digna de uma perseguição de de filme, o clímax que define o destino do protagonista.
Para, não tem pra onde correr
Chegou a sua hora, eu vim buscar você
Chega de choradeira, o jogo é assim
Frito na frigideira, esse vai ser seu fim
Quando não são pelas entonações e vozes diferentes, as participações complementam perfeitamente a intenção do MC em criar esta atmosfera dramática, como se quem ouvisse estivesse assistindo a uma peça de teatro. Todas as participações, Juçara Marçal, Tulipa Ruiz e Siba brilham e revigoram a audição do disco, mas não há como deixar de destacar o verso de Don L. O pernambucano novamente compõe um verso praticamente impecável, que complementa a sequência romântica introduzida por Ogi em “PQ” e finalizada em “Eu pergunto por você”. São idas e vindas de um relacionamento caótico, descritos de forma precisa e contemporânea por Don L:
Parece mei’ bullying
Estado depressivo, scrolling
Meu uísque purin’, sem mais gelo
Eu devo ter mó fino em meu peito
I can’t get no satisfation
Diária dela em minha cama, Dublin
Dancinhas, biquínis, zoom in, zoom out
(para, para, para)
É difícil até de encontrar uma categoria ou subgênero do rap para enquadrar o trabalho do Ogi, algo que não é exclusivo deste disco. Em Crônicas já víamos algumas dessas características, em RÁ! esse estilo único se tornou evidente e aqui em ALEATORIAMENTE vemos a lapidação dessa construção. Pra mim, pelo menos, esse disco tem potencial para ser um dos melhores do ano para além do rap.
O cronista paulista vira um contista clássico
Nas imediações da Grécia Antiga ou na descrição de Vinicius de Moraes sobre uma favela do Rio de Janeiro, Orfeu é um homem acometido por um amor tão profundo por sua amada, Euridice, que é capaz de mergulhar nas profundezas do inferno para resgatá-la. O homem, independente da encarnação, dialoga e negocia com o Cão se isso significar que o amor vigorará novamente ao fim — spoiler: não vigora. Essa história, assim como boa parte da mitologia greco-romana, está fadada a se repetir inúmeras e inúmeras vezes na ficção e talvez até na vida real. Desta vez a estrutura básica do amor inconteste levado às instâncias infernais encontra casa nos versos de Eu Pergunto Por Você, a nona faixa do mais novo álbum de Rodrigo Ogi, vulgo “Velho”, vulgo “o cronista de SP”.
Mergulhado numa produção de tom épico, com um sampling que remete sonoramente ao imaginário gótico, ao inferno dantesco e às capelas pré-renascentistas, o verso que abre a canção apresenta perfeitamente a dor de um Orfeu não nomeado:
Fiz um desafio ao diabo
E seu vencesse eu teria meu desejo
E por isso eu tava tão obstinado que ele nessa lona deu um beijo
Só que ele é o pai da mentira
E somente me deu só uma dica
Que dizia onde era o lugar que eu devia procurar
Eu corri pra te encontrar
Eu pergunto por você
Tô tentando entender ou eu te perdi
Essa letra em especial cristaliza o tom geral do álbum, que a cada duas ou três músicas conta um conto de horror, todos profundamente embebidos em referências diretas ou tácitas às mitologias ocidentais clássicas e contemporâneas. Anjos, demônios, Netuno, Deus e o Diabo habitam as 12 faixas de diferentes formas. Em certos momentos, como nas primeiras duas faixas, “Rotina” e “Aleatoriamente”, o álbum parece abordar os terrores urbanos com hipérboles misturadas com metáforas divinas para nos mostrar como a rotina do proletário sob a égide do capitalismo é extenuante, assustadora, incitante das piores ansiedades.
Em outras, como as canções consecutivas “Chegou Sua Vez”, “Valha-me”, vemos a realidade ser tão aterrorizante que logo se mistura ao mágico, numa espécie rapper de realismo fantástico (estilo literário amplamente difundido na América Latina por meio de livros como “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marquez), uma vez que o protagonista João corre de uma música para a outra, começando numa narrativa de velho oeste em que a polícia persegue a família de sua vizinha e depois a sua própria, após aceitar se envolver na confusão. Dali, na canção seguinte, o protagonista João se encontra em uma intensa fuga cujo fim se dá no embate contra um gigante formado da amálgama de ratazanas, a qual o mastiga por toda a eternidade — uma possível metáfora para as prisões no Brasil, repletas de ratos que literalmente mastigam detentos vivos, como pode-se encontrar em relatórios de entidades de direitos humanos de todo país.
Esse conjunto de terrores — fantásticos ou não — é acompanhado por uma produção que muito lembra Gorillaz e também a banda estadunidense de rap Clipping, que, tal como este álbum de Ogi, utiliza de um eletrônico experimental intenso e repleto de sonoridades metálicas e ecoantes para compor a atmosfera de tensão, ansiedade e urgência para sobreviver. Clipping vem há alguns anos dando o tom do que deve ser o horrocore na cena internacional de rap, construindo, por meio de rimas rápidas e beats angustiantes, cenários que misturam o terror da existência humana na modernidade com os clichês das ficções de horror e suspense. A semelhança estética e temática entre a banda gringa e o nosso cronista brasileiro é realmente grande e pode marcar um novo momento para o rap brasileiro, agora com mais um precedente para a expansão da criatividade lírica e de produção.
Vale a pena ouvir ALEATORIAMENTE?
Ogi nos apresenta algo pouco comum no rap brasileiro: horror core, ou seja, rap tematizado no gênero de terror. Alguns leitores mais mergulhados no podrão da música brasileira vão citar Patrick Horla como principal músico da cena a compor letras nesse sentido; todavia, Ogi entrega algo novo em mais de um sentido, pois seu terror não é mera exploração chocante da violência em estética. Não se trata aqui de uma pornografia do medo e do grotesco, mas de um sensível trabalho de lapdação lírica e instrumental daquilo que podemos chamar de terror do cotidiano.
O medo nesta obra é nada menos que o medo do outro, da outra, de nós mesmos. É o medo das consequências mortais de uma extenuante rotina na barriga da baleia (a cidade), onde nos esforçamos diariamente para não sermos digeridos pelo suco gástrico. Já um cânone do rap paulistano há mais de década, Ogi abre portas para novas experimentações surjam na nossa lírica mainstream. Se Exu permitir, os caminhos se abrirão e o álbum refrescará a mente do rapper médio para além da dicotomia: Ostentação (putaria, droga e grana) versus crítica social.
Acreditamos que esteja evidente nossa admiração pelo trabalho produzido por Rodrigo Ogi. Mesmo em nossas primeiras audições, são muitas informações e conexões que podem ser feitas, mas para além disso, temos uma produção completa, bem desenvolvida e que novamente dá um passo adiante na carreira deste artista que se desenvolveu no rap e tem tudo para conquistar a música brasileira com ALEATORIAMENTE.