Flagra essa Faixa: Vida Loka (parte II), Deus é uma nota de 100

O rap é um gênero musical pós colonial não apenas em sua localização temporal, mas também nas temáticas recorrentes; na sua história diretamente relacionada aos corpos negros outrora escravizados pelo gigantesco mercado capitalista europeu; e até mesmo na forma como as rimas e o sampling, no gênero, constroem uma noção de identidade completamente fragmentada e remontada à necessidade dos anseios de almas urbanas periféricas.

Eu queria ter, pra testar e ver

Um malote, com glória, fama

Embrulhado em pacote

Se é isso que “cêis” quer

Vem pegar

Jogar num rio de merda e ver vários “pular”

Dinheiro é foda

Na mão de favelado, é “mó guela”

Na crise, vários pedra na venta, esfarela

Tal como a identidade negra é constituída pela ausência de um rastreio de nossa identidade étnica territorial, uma vez que não sabemos nem quem foram e nem de onde vieram nossos antepassados — senão pela resposta excessivamente ampla de “África” —, o rap é uma construção de uma identidade oriunda das colagens da nossa vida, unida então pelo que chamamos de movimento Hip Hop.

A icônica banda paulistana de rap Racionais MC descreve muito bem o que significava essa experiência negra diaspórica na periferia da mais populosa cidade da América Latina. “Vida Loka (parte II)” descreve dois dos grandes anseios do negro sob a égide do capitalismo pós-colonial: abraçar o diabo do capital ou buscar um retorno a uma terra que não existe mais?

Inconscientemente

Vem na minha mente inteira

Uma loja de tênis

O olhar do parceiro feliz

De poder comprar

O azul, o vermelho

O balcão, o espelho

O estoque e a modelo

Não importa

Dinheiro é puta

E abre as “porta”

Dos “castelo” de areia que quiser

Num primeiro momento, Mano Brown rima sobre o fluxo de pensamento que o leva a ponderar uma série de possibilidades de domínio e de posse de propriedade privada que o permitam comprar “os castelos de areia que quiser”. Ou seja, Mano Brown, entende que, só de comprar um tênis maneiro, um favelado preto como ele pode ficar muito feliz, mas a raiva desse sistema que nos subjuga pelas carências econômicas que ele mesmo gera o faz imaginar o tal tipo-ideal de sujeito na loja comprando absolutamente tudo, inclusive a própria modelo (que pode ser tanto a lojista quanto uma possível modelo da marca de tênis mesmo).

“Comprar a modelo tem” um tom misógino que pode ser explicado pelo pensador negro francófono Frantz Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas, no qual ele fala também sobre como o homem branco constrói uma noção de posse sobre a mulher, em especial a branca, de modo a pô-la como o principal “objeto” de desejo do homem negro, que almeja a vida dentro daquele lugar que ele mesmo ajudou a construir, voluntariamente ou não.

Preto e dinheiro, são palavras rivais

E então mostra pra esses cu

Como é que faz

O seu enterro foi dramático

Como um blues antigo

Mas de estilo, me perdoe, de bandido

Tempo pra pensar, quer parar

Que ‘cê quer?

Viver pouco como um rei ou muito, como um Zé?

Ao fim, todos esses castelos compráveis são de areia, podendo ser derrubados ao primeiro vento mais forte ou então por uma violenta onda, onda essa que poderia ser, no nível individual, a depressão, a falência etc., e, no nível coletivo, o cataclisma do próprio sistema capitalista, sempre em crises ou, se deus quiser, a um passo da revolução. O consumo é uma ilusão, Mano Brown sabe, mas, por mais letrado sobre a sociedade que seja, seu inconsciente deseja que todos tenhamos o prazer de comprar o que quisermos, já que isso é o que nos valida individualmente neste sistema econômico.

Às vezes eu acho

Que todo preto como eu

Só quer um terreno no mato

Só seu

Sem luxo, descalço, nadar num riacho

Sem fome, pegando as fruta no cacho

Eventualmente, Mano Brown retoma a crença de que tudo que queríamos, realmente, é a simplicidade de uma vida bucólica, com uma intimidade da natureza que não se pode ter numa megalópole como São Paulo, especialmente nas áreas com menos acesso a saneamento, saúde etc. Se pudéssemos, viveríamos um mundo que não existe mais. Um mundo pré-colonial. Um mundo onde podemos viver em comunidade, de forma pacífica, comendo o que a natureza permite, sem usurpá-la ao desgaste ecológico. Mano Brown sonha, conscientemente, com aquilo que nos foi roubado e que, pelas consequências existenciais das ações coloniais, não existe mais — ao menos não de forma realmente acessível.

E meus guerreiro de fé

Quero ouvir, irmão

Programado pra morrer nós é

Certo é certo é crer no que der

Firmeza? Não é questão de luxo, não é questão de cor

É questão que fartura alegra o sofredor

Aqui, neste trecho predecessor, os Racionais evocam a noção de que a luta é coletiva a partir do coro de homens negros que reconhecem que o sistema os programa para morrer, e que, para sobreviver psicologicamente, eles devem se agarrar na crença que lhes for possível. Qual a crença possível do capitalismo? Isso mesmo, o acúmulo. A fartura alegra o sofredor, pois ela é o meio e o fim para o sucesso material no sistema que os programa para morrer. Morre-se de fome, homicídio ou adoecimento mental, mas, talvez, se pudermos crer no que der, talvez assim possamos sobreviver e, quem sabe, viver a alegria de um sofredor.

Aí truta, é o que eu acho

Quero também

Mas em São Paulo

Deus é uma nota de 100

Vida “loka”

No fim, independente das vontades mais genuínas de mergulhar num universo belo e à parte da luta caótica pelo sustento de cada dia, São Paulo é uma nota de 100, e é ela que você vai usar para comprar o que quiser, cheirar o que quiser, comer quem quiser, fazer o que quiser — ao menos é isso que a nota de 100 vende em ideia.

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