Flagra Essa Faixa: “Braille”, o renascimento de Rico Dalasam

Jefferson Ricardo, ou Rico Dalasam, é um dos artistas que possui as letras mais sensíveis e poéticas do cenário do rap brasileiro, e também uma das canetas mais importantes que temos, e quem fala isso não sou eu, é o Emicida:

Em 2017, as complicações contratuais do hit “Todo Dia”, com os antigos produtores musicais de Pabllo Vittar, e o cancelamento feito por alguns fãs da artista, levaram Dala a um bloqueio criativo e um hiato de músicas novas por quase três anos

Um verme preso na ideia que tem que fuder
Com a vida de quem não dá pra explorar
Me fez quebrar a régua que mede o meu talento
E hoje eu mesmo abro o caminho que vai me pôr lá

Expresso Sudamericah (2021)


Até que em abril de 2019, o cantor lançou “Braille”, o pontapé de um universo criativo riquíssimo que culminou em 2 EP’s, 2 álbuns e o renascimento artístico de Dalasam. Braille é a faixa que o trouxe de volta à cena do rap, às suas preciosas composições e – principalmente – a si mesmo.

“Essa música me ajudou a achar de novo um caminho, tá ligado? A gente tava todo sem saber o que fazer, e aí essa música ajudou a achar de novo um galho pra agarrar, e desde lá, alguma coisa tá sendo nova, todo dia da minha vida, todo dia…” 

Dalasam sobre “Braille” no Encontro DDGA Ao Vivo.

O renascimento

“houve esse tempo, o tempo que eu perdi as vontades../ e ir fazer outra coisa é pura angústia enquanto nada se revela.”
– Dala no vídeo promocional de DDGA (2021)

Dalasam possui a capacidade de transformar histórias cotidianas em letras incríveis e cativantes, como fez no hit “Todo Dia” (com participação de Pabllo Vittar), baseado em uma situação que viveu no carnaval de 2016, fazendo todo o Brasil cantar junto, sendo impossível pensar no carnaval de 2017 sem lembrar dessa faixa.

Se sentindo enganado pelo acordo feito com os produtores Rodrigo Gorky e Arthur Gomes, Dala entrou em uma disputa judicial acerca da composição da música “Todo Dia”.

Esse processo fez com que a música saísse das redes sociais e, como consequência, Rico passou a sofrer o escrutínio virtual por parte da fanbase de Vittar, que o acusavam de “oportunismo” e de “tentar ganhar fama” em cima do nome da artista.

Alguns tweets de ataque à Dalasam em 2017

Segundo o artista, os ataques o fizeram repensar sobre sua carreira, avaliando se ainda poderia cantar ou se seguia um caminho afastado da música, afinal, todos os códigos e signos que haviam o levado até a fama não faziam mais tanto sentido.

“Antes de chegar “Braille”, em 2019, a gente se reuniu aqui, eu e as pessoas que trabalham comigo, para recalcular a rota. Recalcular mesmo, olhar os códigos e ver quais não serviam mais. Códigos que a gente usou bastante e que não faziam mais sentido.” 

Dalasam em entrevista a Elástica (2021)

A partir desse baque, o estilo de Dala, as músicas de festas e a sonoridade pop foram invertidas, para dar lugar à sua nova faceta. Na sonoridade de um pagode lento, nasceu Braille, a partir da levada de uma outra música e da frase “fecha o olho e me lê em braille”

Foi a partir da composição de Braille em 2019 que surgiram as outras músicas da sua “fábula afro-latina”, que se transformou na obra Dolores Dala Guardião do Alívio (lançada em 2020 como EP, e como álbum em 2021).

Além disso, Rico também trouxe uma estratégia de divulgação interessante para o single: o WhatsApp. Um mês antes de lançar a faixa oficialmente, o artista divulgou seu número para que os fãs pudessem ouvi-la antecipadamente, e, assim, criando um ambiente intimista que seria essencial para a construção dos Encontros DDGA anos depois.

Os “dois lados” (igual Chanel)

“Todos os códigos que você encontrava em mim em 2016, 2017, foram invertidos. No meio dessa rota, eu meti um giro de 90º. Isso vai trazer ao público outra música, as músicas em si obedecem outro bpm.”
– Dalasam em entrevista ao Papel Pop (2021)

O artista paulista tem em seu repertório estilos vastos passando pelo Pop, R&B, Funk e Pagodão, possuindo vários trabalhos sólidos em sua carreira como Balanga Raba (2017), Orgunga (2016) e Modo Diverso (2015), este último sendo importante para a consolidação do queer rap (vertente do rap LGBTQIA+) no país, ganhando um remix em 2020 em comemoração aos seus 5 anos.

O caminho feito por Dalasam, do pop às letras mais lentas e cadenciadas filosóficas, o fizeram ser comparado com o artista americano Frank Ocean, que, inclusive, tem faixas cantadas por Dala em alguns shows, a exemplo de sua apresentação no Rio de Janeiro em 2022:

Braille, por sua vez, é um R&B com flow que se assemelha a um pagode, um ritmo mais lento em relação aos seus lançamentos pop de antigamente. 

Com produção de Dinho Souza (parceiro de Rico desde os tempos de Balanga Raba até os dias de hoje), a faixa possui o sample de “Chanel” (2017) de Ocean.

As bases das músicas não são iguais apenas na sonoridade. Rico assim como Frank, versa sobre as dualidades dentro de um relacionamento, embora Braille traga um elemento a mais: o recorte de raça.

O enredo de Braille se pauta na experiência de um relacionamento interracial e todas as complicações psicológicas, emocionais e sociais trazidas por ele. Abordando as expectativas de amigos e familiares, os anseios por uma conexão amorosa verdadeira e profunda, onde Rico, enquanto homem negro e homossexual brasileiro, busca compreender seu lugar e o de seu parceiro nessa teia de relações.

Caro menino branco, esse nosso encontro pede a lucidez
De saber o lugar que me encontro, e você, por sua vez
Se é pra andar ao meu lado
Saiba que alguém foi senhor, alguém foi escravo
E, entre nós, esse “espaço” pede alguns passos

As dualidades, iniciando-se na cor dos amantes, trazem consigo as heranças sociais de um Brasil historicamente escravocrata, que se reflete nos diferentes estilos de se ver a vida, de se portar socialmente e dos momentos de tensão e alívio dentro de um relacionamento.

Eu vi glitter onde não tinha
Você viu glitter, me achou bagunceiro
Entre brigas e cinzeiro, eu acordo primeiro
Pra ter foto sua em meu travesseiro (…)
A vida tece rendas e rendas de incompatíveis passionais
Tão fãs de Lady Gaga, tão noras de Lady Di

Ver glitter onde não existe se refere aos brilhos que o eu-lírico encontra em locais inesperados, enquanto esse brilho pode também significar caos ao seu parceiro, que, ao mesmo tempo em que brigam, o autor ainda valoriza a presença de seu amado, querendo eternizar os momentos de paz entre ambos. 

Em conjunto a tudo isso, Dalasam expressa bem essas dualidades ao comparar seu relacionamento como de “incompatíveis passionais”, pessoas de ambientes sociais diferentes: um fã da excêntrica Lady Gaga e outro pendendo ao conservadorismo da Rainha Elizabeth, nora de Lady Di.

Além dessas características, Dala também destaca as dualidades psicológicas de seu parceiro que podem trazer a estabilidade e a instabilidade na relação.

Junto todo mundo fica, até as roupas nos varais
Na madrugada a nossa tabuada é a do dois nessa conta de mais
Inteligente igual Border Collie
Mas sofre de borderline

A inteligência do parceiro, para Rico, é uma de suas qualidades que o atraem, porém, a inconstância em seus comportamentos devido a síndrome de Borderline podem afetar a estabilidade da relação, o que acarreta em uma atenção maior de ambas as partes no acolhimento e no cuidado dentro do relacionamento.

Vale ressaltar que os conflitos não ocorrem apenas no relacionamento, afinal, Rico não possui o apoio total de sua família e amigos:

Minha mãe disse que eu me fodi
Minha amiga disse assim: “‘cê palmita”

Embora viva em um relacionamento imperfeito, o eu-lírico busca (de todas as formas) se sentir seguro com seu parceiro, tendo-o como um lugar de paz ainda com todos os contratempos estressantes do cotidiano, mesmo o outro ainda sendo branco. Referência clara a Frank Ocean também.

Frigideira que gruda esse pão sem glúten
Ai, que luta
Eu puto digo que é a última
Janela aberta, choveu no meu boot
Dalasam, set, sec, self
Você nem sabe quantas fotos tenho tua nu
Quantas vezes não fez sentido ter outro menino porque eu queria tu

Além dessas dualidades, é interessante como Dalasam, assim como Frank Ocean, consegue trazer suas experiências enquanto homem negro e LGBTQIA+ em uma abordagem universal. Ambas as músicas trazem diferentes perspectivas dentro de uma relação, especialmente suas dualidades e a busca pelo equilíbrio entre elas.

Mil tretas de Insta’, mil meninos brancos
Que ouvem Ocean Frank
Prefiro mil vezes seu bumbum na minha coxa
Embalando esse funk

Seringueira na maldição do plástico

A primeira versão de Braille no Youtube foi gravada pela Horizonte Sessions e possui uma introdução que foi cortada no EP e álbum DDGA.

“(…) porque não tem outra forma de se esquivar, tá ligado? da maldição do plástico se não for nessa linha. 
E se, ó, seringueira na maldição do plástico, essa é a ideia, vai na minha”

intro de Braille no Horizonte Sessions (2019)

A frase “seringueira na maldição do plástico” traz o cerne da faixa: a busca por uma relação substancial, íntima e arraigada pelo tempo. A seringueira em contraponto ao plástico significa a busca por algo mais firme, duradouro e natural, distanciando-se do que é plastificado e frágil.

Traz tanto amor a bordo
Fecha o olho e me leia em braille, em braille, em braille
Fecha o olho e me leia em braille, braille, braille

O refrão é um manifesto a essa busca de um relacionamento profundo, onde ambos conseguem se comunicar além das palavras, utilizando apenas o tato, tal como o sistema Braile, além de também possuir um contexto sexual envolvido de toques e carícias entre os namorados.

Em uma outra interpretação, também podemos considerar que o “fechar o olho” pode ser a superação das dualidades no relacionamento do eu-lírico, um pedido que este faz para seu parceiro o conhecer melhor e, deste modo, entender suas virtudes, falhas e traumas.

Dalasam entende que esse processo não é algo fácil de se fazer, por isso pede paciência para seu parceiro, sabendo que ambos demorarão meses, ou talvez anos, para se entenderem de fato, reconhecendo que as percepções podem mudar ao longo do tempo.

Deixa um pouquinho pra ler amanhã
E diga o que entendeu de mim
Deixa um pouquinho pra ler amanhã
Se o tempo amanhecer ruim

Além da intro, uma outra mudança imperceptível, porém interessante, da primeira versão para a de DDGA, é uma ponte para o refrão:

Clack, clack, clo, clay, plack, eu penso
Clay, clay, clo, tcho, plack, eu paro
Clay, clay, clo, eu paro e avanço
Clay, clay, clo, eu paro, eu colo
Clay, clay, clo, eu paro de ir
Clay, clay, clo, eu paro e acordo

A versão de 2019 não possuia as 5 frases em destaque, sendo adicionadas um ano depois, e que podem representar as fases que Rico teve durante o relacionamento: entre o pensar e o agir, em um turbilhão de conflitos e dualidades, demonstrando as tentativas de fazer dar certo, porém, as diferenças falaram mais alto e o fez “parar de ir”.

A frase “eu paro e acordo” pode também demonstrar que tudo não passou de um sonho, ou melhor, uma projeção de um personagem que se viu tão distante do amor, que idealizou sua relação, mesmo que a realidade mostrasse o oposto.

O que sei sobre o amor, eu inventei
É inegável quando verte o amor em mim
A cada vez que me fiz amável
E tantas outras que me refiz amável
Só eu poderia constatar
O que sei sobre o amor, eu inventei

Guia de Um Amor Cego (2022)

Por que “Braille” é tão importante?

Braille é um marco importante para a carreira e as obras posteriores de Dalasam, especialmente a fábula afro-latina Dolores Dala Guardião do Alívio

Afinal, Dolores Dala é uma obra sobre dualidades: dor e alívio, tensão e distensão, choro e risos, que são interdependentes mas coexistem para que a vida faça sentido. Mais do que isso, o álbum fala sobre silenciamentos, opressões, racismo, desigualdades e – principalmente – afetos dentro da trajetória de um indivíduo inserido nesse “expresso sul da américa”. 

Uma fábula que vem sendo contada há 5 anos, e trouxe um novo horizonte artístico e sonoro para Dalasam, onde ele amplia o universo criado em 2019 sem soar repetitivo – nem em flows, nem em produção e muito menos em letra.

DDGA também traz novos detalhes desse relacionamento interracial, como as brigas no interlúdio “Não é Comigo”, a dificuldade em assumir um relacionamento sério em “Última Vez”, que explica o refrão onde Rico anseia por algo profundo.

A constatação de se viver um namoro abusivo em “Mudou Como?”, as conciliações de “Supstah”, a necessidade de mudanças em “Vividir” e – finalmente – a finalização deste ciclo em “Estrangeiro”.

Um ciclo amoroso e uma experiência que se estende no EP “Fim das Tentativas” (2022), em que se percebe sozinho, em um sentimento de amor projetado no Outro, que remonta aos traumas de sua infância solitária em um orfanato, descrita em seu último álbum “Escuro Brilhante: Último Dia no Orfanato Tia Guga” (2023).

Meu grande passo em direção ao amor

Sou eu me levando no braço

Pra onde ninguém me arranque

Pra onde ninguém me deixe

“Doce” (2023)

É inegável que Braille trouxe uma nova narrativa para um artista que sempre soube desenvolver belas histórias: que são reais e expressam a solidão de um homem negro LGBTQIA+ no Brasil do século XXI, e que são íntimas, mas que atravessam milhares de pessoas que cantam de forma calorosa junto a Dalasam sejam nos antigos Encontros DDGA ou em sua própria casa.

https://twitter.com/cleberhmelo1/status/1490506834049970182/video/1

Todas essas nuances e o desenrolar desse universo lírico mostrado de 2019 até agora nos fazem entender cada vez mais o personagem cantado por Rico em Braille, suas particularidades, seus desejos e sua história, é quase como se estivéssemos conhecendo a história de alguém que Dispõe Armas Libertárias A Sonhos Antes Multilados; um grande amigo confidente… nesse caso, o próprio Jefferson. 

“as palavras, minhas maiores companheiras entraram em ausência me levando junto até que chegasse o tempo oportuno
minhas reservas e recursos estavam acabando quando os primeiros versos de braille surgiram
me devolvendo um sorriso que simbolizava o fim de uma luta vendado..”

https://twitter.com/ricodalasam/status/1362044401804062720/video/1

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