Os 10 Melhores Álbuns de Rap Nacional (2015-2019)

Três anos depois da Equipe do Genius Brasil avaliar os melhores discos do início da década, entre os anos de 2010 até 2014, nos reunimos para pensar na reta final dela. Entre os melhores discos no período de 2015 até 2019, refletimos sobre aqueles que além de serem as melhores produções musicais do gênero também confirmaram a popularização do rap como um fenômeno nacional, e as diversas mudanças nos estilos de rima e sonoridade.

Desta vez, 10 membros elaboraram suas indicações a partir de suas avaliações. Dentro das indicações, foram listados 39 álbuns e a partir deles, construímos a lista final, que por sua vez entrou numa nova discussão para que houvesse certeza de que os vencedores tinham cumprido todos os critérios adotados.

Dentre os critérios que nos permitiram finalizar a seleção, consideramos se os discos da lista final resistiram ao teste do tempo, permanecendo como aqueles álbuns que podemos apreciar ainda hoje; verificamos também a influência em outros trabalhos e observamos a relevância nos debates, nos perguntando se estas são as obras que estão entre as mais citadas, direta ou indiretamente, nestes últimos cinco anos.

Como sempre ressaltamos, não podemos negar a falta de discos de mulheres artistas do rap. Na lista anterior não tivemos nenhum nome entre as 10 melhores, sendo que apenas Batuk Freak da Karol Conká e Tássia Reis EP da própria Tássia apareceram na discussão de elaboração daquela lista.

Desta vez, além de uma mulher estar entre os cinco melhores, muitas outras surgiram durante a discussão. Outra Esfera da Tássia Reis, Selvagem Como o Vento de Brisa Flow, Drik Barbosa da própria Drik, Rimas & Melodias do coletivo de mesmo nome e 129129 da Lay esquentaram a disputa quando foram citadas, mostrando uma mudança evidente no consumo de rap nacional.

Ao invés de nos questionarmos dessa vez o porquê do cenário continuar desfavorável para elas, preferimos afirmar que esta próxima década promete ser delas, não só entre nós, mas pelo fato do público do rap ser muito diferente das décadas anteriores, assim como os trabalhos que são mais consumidos e compartilhados, a partir das redes sociais, neste novo período.

Outra surpresa positiva, de certa forma também uma evidência esta alteração no público, foram os discos Pajubá da Linn da Quebrada e O Proceder da Gloria Groove que também estiveram na disputa, embora não apareçam na lista final. É um sinal de que mesmo com todos os problemas, o rap nacional passa por mudanças importantes nestes anos.

E por fim, ainda poderíamos nos perguntar: qual será o impacto do trap na cena nacional? Os discos de trap irão figurar ou mesmo dominar as listas de melhores nos próximos anos? Embora ainda não tenhamos visto este impacto, outras influências que vão muito além do trap também foram lembrados, como Seguimos na Sombra do Nectar, Mixtape Pirâmide Perdida Vol. 7 do coletivo Pirâmide Perdida, Verde Esmeralda, Cinza Granito do Victor Xamã, Dovahkiin de Eloy Polêmico, Zulu Vol. 1 de Zudizilla e Running de Febem, entre outros, sugerindo uma cena muito mais diversificada nas sonoridades, temáticas e regionalidades.

Sem mais delongas, vamos aos 10 Melhores Discos de Rap Nacional de 2015 a 2019


10º. Veterano, Nego Gallo

O MC que marcou a cena com o clássico Dinheiro Sexo Drogas e Violência de Costa a Costa (2007), a faz novamente em 2019. Embora seja um dos álbuns mais recentes da lista, Gallo traz em sua mixtape a experiência de um veterano em todos os sentidos da palavra.

É uma gíria da cidade. O veterano já está nessa guerra, que não é dele, ele nasceu ali. É como se estivesse na Síria, você nasce no meio de um negócio e vem lutando. Tenho 44 anos, mas ‘veterano’ não tem a ver com a idade. A cidade ainda tem que melhorar muito.
Carlos Gallo via Estadão

A realidade das ruas das favelas da capital cearense ainda marcadas pela violência, pobreza, cujas mazelas ainda assombram todo o Brasil, são cantadas por Gallo, Leo Grijó, Coro MC e Don L por meio do brega, funk, trap e o reggae, estilos característicos das quebradas de Fortaleza, sem perder a identidade dos versos cadenciados do MC. Sem dúvidas, amplia o universo apresentado pelo Costa a Costa e demonstra o amadurecimento artístico de Gallo, um Veterano que ainda tem muito a dizer.

Desde seu interlúdio, Gallo já nos transporta para as ruas de Fortaleza, nos convidando para refletir sobre a vida e as relações contemporâneas, para assim nos contar, junto com Don L, uma história em “No Meu Nome”, a Melhor Música de 2019 pelo Prêmio Genius Brasil. Uma narrativa comum às favelas brasileiras: marcada pela violência, criminalidade e pelo caos social, e que nos prepara para afirmar que o “bagui virou”.

Gallo escreveu “sem a pretensão de hype”, escreveu sobre a sua realidade e a realidade dos seus. Contudo, os personagens apresentados ali representam a história dos habitantes não só de Fortal, mas de todos os cidadãos brasileiros. E uma mixtape como essa é fundamental para “guiar, mexer com paradigmas e oxigenar a música”. Um presente para o rap cada vez mais nacional.

Minha cidade me faz ser real (Um, dois)
Meu bairro me faz ser real (Salve)
Meus amigos me fazem ser real (Meus amigos, salve)
Isso aqui é Fortal


9º. Regina, niLL

Não é exagero dizer que Regina foi o álbum que lançou niLL na cena mainstream nacional. Mesmo com sua participação na linda faixa “De Fato”, com Raffa Moreira, e sua mixtape Negraxa, ambos de 2016, ainda faltava algo para estabelecer a imagem do artista para todo o Brasil. Com seu toque extremamente pessoal, niLL abre todas as páginas do livro de sua vida para o ouvinte, trazendo um dos melhores discos da década.

Em 2017, o conhecido ano lírico, niLL nos presenteou com seu álbum de estréia, Regina. O disco, que serve de homenagem à homônima mãe do rapper, possui um tom próprio e único. Desde os áudios e a capa desenhada por sua sobrinha às conversas imaginárias com sua falecida progenitora, tudo leva à uma identificação sem igual com os trabalhos que havíamos na época.

Com poucos feats e produção majoritariamente por parte d’O Adotado(Com excessão das faixas 1, 7 e 14), é possível notar o cuidado e delicadeza que o artista teve ao organizar o projeto. As participações também não deixam à desejar, com Victor XamãDe LeveRodrigo Ogi e seu parceiro de coletivo Yung Buda.

Nas próprias palavras de niLL, o projeto tinha o intuito de fazer o ouvinte se aproximar de sua família, tentar entender o lado deles ao invés de apenas seu lado. Pessoalmente, digo que o rapper fez mais do que isso, Regina te coloca dentro da vida do artista de forma que não havíamos recentemente no rap.

O tempo passa e o que fica é saudade
Saudade, saudade, saudade, saudade
Ficou faltando um abraço, cê sabe
Cê sabe, cê sabe, cê sabe, cê sabe
Da nossa história ninguém viu metade
Metade, metade, metade, metade
Não disse adeus e sim te vejo mais tarde
Mais tarde, mais tarde, mais tarde, mais tarde

niLL, em “Tchau, Regina”

8º Lugar – O Menino que Queria Ser Deus, Djonga

Após seu controverso álbum de estreia, Heresia, Djonga foi contra as críticas feitas por diversos veículos midiáticos e nos trouxe O Menino que Queria Ser Deus, projeto que sintetiza a história de vida do rapper junto com uma gigantesca evolução na musicalidade do artista.

Djonga segue a segunda instância da trilogia reparando todas as arestas que deixou em aberto da última vez. Foi lançado exatamente um ano após seu álbum de estréia e contém a mesma quantidade de faixas, todas melhor estruturadas e escritas. Um ponto a se destacar também é a arriscada escolha de Djonga em cantar em algumas das faixas. Por mais que claramente o artista tenha limitações naturais em sua voz, o fato do rapper ter escolhido essa jogada quebra a monotonia do disco, aspecto que mais deixou à desejar em Heresia.

A produção, que ficou por sua maioria por parte do Coyote, também é outra característica marcante. O trabalho tem uma alta influência do trap, mesmo sem haver uma fuga nas raízes de boombap do rapper. Destaque para ambos beats da faixa “JUNHO DE 94” , que conta com uma transição fantástica.

Não é atoa o fato de Djonga ser um dos MC’s mais famosos do Brasil. O jeito que o artista construiu o disco é algo único e desafiador, mesmo sem sair de sua zona de conforto. Em 2017, OMQQSD se tornou um ponto de referência no rap nacional, e com certeza vai continuar assim por muito tempo.

E o mundo tem sido pequeno demais pra nós, pra nós
E a vida tem dado conquista demais pra nós
E o mundo tem sido pequeno demais pra nós, pra nós
E a vida tem dado conquista demais pra nós
Djonga, em “ETERNO


7º. Esú, Baco Exu dos Blues

E se eu tivesse morrido pós Sulicídio hoje, eu seria um mito.

Baco em “Oração à Vitória” (Faixa 3)

Se Baco seria um mito antes de Esú, o álbum o transformou em um Deus; deus de si mesmo, que se mostra frágil ao mesmo tempo que exala poder, que é imortal ao mesmo tempo que é fatal e “canta a divindade quando narra o lúgubre”. A jornada do eu-lírico se reflete na vida cotidiana de cada um: entre altos e baixos, cercados pela auto-afirmação e a depressão, rumo a uma evolução constante.

Fruto de um contexto pós-Sulicídio e do “ano lírico”, a estreia de Baco já estremece desde a primeira faixa, passando por ritmos mais lentos, e que retoma suas energias criando uma “montanha-russa sonora” que expressa bem a ideia do álbum.

As produções, em sua maior parte assinadas por Nansy Silvs, misturam as batidas enérgicas do trap junto com o batuque do candomblé, além de trazer samples de outros estilos como o rock e o rap. Junto com a lírica do MC, Esú revisita os elementos históricos e culturais do Nordeste, passando pelo manguebeat de Recife, o batuque do Maracatu, as crenças no Senhor do Bonfim e a literatura de Jorge Amado. Patrimônios culturais do nosso país.

A musicalidade do disco é apenas um dos elementos que o elege marcante para o rap nacional. As fotografias – dando destaque a capa – inspiradas em Mário Cravo Neto destacam ainda mais os elementos sincréticos os quais o álbum se baseia, e formam, junto com as músicas, uma odisseia a vida e a nossa posição enquanto humanos.

Dentro dessa jornada de Baco, temos a icônica “Te Amo Disgraça” que o apresentou para o grande público, é considerada como uma das 15 maiores lovesongs do rap nacional por renovar o estilo lovesong, “desmitificando o senso comum lírico”.

Sem dúvidas, Esú é um marco para a carreira de Baco e para o rap nacional. Um clássico tanto quanto os outros dessa lista. Nele, o MC abre os caminhos para a sua obra em um eu-lírico que passou por diversas provações para chegar no seu lugar, que se mata, mas renasce como Exú para passar uma única mensagem: acreditem em si mesmos.

Felicidade é um padrão
Te chamar de feio
E você se acha lindo
Se ache linda
Se ache lindo, se ache linda.

Baco em “Imortais e Fatais” (Faixa 10)

6º. Abaixo de Zero: Hello Hell, Black Alien

Esse é o retorno do cretino
Dos clássicos, hits, hinos e o bolso cheio de pino
Vai vendo, só veneno na visão de zoom
Bebendo cachaça no bar da Área 51
Check it!

Black Alien em “Área 51” (Faixa 1)

Com essas palavras já memoráveis, o veterano Black Alien inicia o álbum Abaixo de Zero: Hello Hell (2019), seu terceiro álbum de estúdio, um trabalho que reafirma a posição do rapper de Niterói entre os maiores nomes do rap brasileiro e nos presenteia com reflexões profundas e honestas sobre sua vida e trajetória.

As palavras que abrem o disco parecem sintetizar bem o que será tratado ao longo das faixas: o retorno de Black Alien à cena, as faixas icônicas e memoráveis, a vida sem drogas, e a visão aguçada que enxerga tudo o que acontece ao redor, mas que também sabe olhar para os lugares mais profundos do ser.

Com 9 faixas e duração de pouco mais de 25 minutos, Abaixo de Zero: Hello Hell é um belíssimo relato ao mesmo tempo terrivelmente humano e profundamente espiritual em que nenhuma palavra e nenhum verso são desperdiçados.

Inteiramente produzido pelo Papatinho da ConeCrewDiretoria, o álbum traz em todas as suas faixas a inconfundível lírica bereta de Black Alien, que está mais aguçada do que nunca neste trabalho.

Vencer a mim mesmo é a questão, questão que não me vence, como diz o rapper na já icônica Carta Pra Amy, é uma das frases que tematizam o álbum, pois resume de forma simples e profunda o lugar em que Black Alien se encontra atualmente: em guerra santa com seu passado, buscando se tornar alguém melhor, mais são e mais humano em meio às agruras e alegrias da vida.

O rapper que já esteve abaixo de zero e visitou lugares da existência que muitos de nós sequer temos ideia do quão aterradores podem ser nos entregou um trabalho belíssimo e potente que conseguiu transformar a vida e o cotidiano em fina arte de forma profundamente sensível.

Abaixo de Zero: Hello Hell pode ser visto como uma espécie de jornada espiritual de um rapper que se encontrou consigo mesmo e nos convida a mergulhar em nossa própria biografia, em nosso próprio caos e em nossa paz a fim de encontrarmos uma versão mais humana de nós mesmos e apresentá-la ao mundo.

É com certeza um álbum que, apesar de ainda novo, já está entre os melhores lançados nos últimos anos.


5º. Eletrocardiograma, Flora Matos

Após sua mixtape com Stereodubs, foram 8 anos de espera até o primeiro álbum da Flora Matos, período no qual a MC enfrentou problemas com empresários, produtora e gravadora até conseguir construir este disco de forma independente.

Porém, este período e os problemas conturbados serviram de inspiração para Eletrocardiograma, incontestavelmente um dos melhores discos de rap dos últimos anos. “Sonhos Gangsta” é umas das faixas de destaque, por sintetizar com maestria essa fase conturbada pela qual a Flora passou – Melhor coisa que fiz foi juntar o dinheiro pra fazer tudo do jeito que acredito.

Neste álbum, Flora explora o amor de diversos pontos de vista, passando pelos altos e baixos, literalmente como o sinal de um eletrocardiograma, para chegar a conclusão que o amor próprio é o mais importante.

Paralelamente, é também de si própria que a artista precisava para alcançar o sucesso. Praticamente sem participações ao longo do disco e com uma produção impecável, assinada por Iuri Rio BrancoNAVE BeatzWillsBifeSantss e a própria Flora. Desta maneira, o álbum que contém apenas 12 faixas flui de maneira orgânica, com uma boa combinação de ritmos, dentre eles bass, soul, dancehall e trap.

Além disso, Eletrocardiograma é um disco responsável pela popularização do trap na música brasileira, a partir das produções do Willsbife em “Me Ame em Miami”, “Não Vou Mentir”, “10:45” e “Sonhos Gangsta”.

Outro aspecto que vale ressaltar desta obra é o tratamento visual que algumas das faixas receberam, que se destacam por uma estética presente nos clipes dirigidos e editados pela própria artista. Nos vídeos Flora materializa seus sentimentos de uma maneira confiante e única. E, apesar de todos os problemas que sua “paixão proibida” trouxe para sua carreira, a MC demonstra que amadureceu ao longo desse doloroso processo, resultando no término deste ciclo no disco apresentado aos ouvintes neste trabalho.

Assim, não há dúvidas que Eletrocardiograma conquistou seu espaço entre mais marcantes na história do rap nacional, ganhando graça dos ouvintes e tendo muitas das músicas como trilha sonora de muitos bailes de rap de todo Brasil até hoje.


4º. Rá!, Rodrigo Ogi

Quatro anos depois do lançamento de Crônicas da cidade cinza, com alta expectativa do público para o novo trabalho, Rodrigo Ogi nos apresentava o . Se no primeiro disco a narrativa era voltada a observação da cidade de São Paulo e seus personagens, agora o movimento é diferente: estamos diante de um processo vivido internamente pelo próprio Ogi. O  se dá no período de uma consulta ao psicólogo. É deitado no divã que as aventuras são contadas e os desabafos são feitos, assim como Tony Soprano faz no primeiro episódio da sua icônica série.

É como se tudo que eu visse eu absorvesse
O ato de imaginar-se no lugar do outro para escrever sob aquele ponto de vista ganha literalidade em “Trindade”, canção dividida em três partes. Nela, o personagem se transforma em todo mundo que toca: o garçom, o policial, o taxista, o cachorro ou o pássaro. Viver diversas experiências como outras pessoas é abrir mão de si por um tempo, a liberdade almejada parece a de poder sair da prisão que é o próprio corpo. Conhecido pelo potente storytelling, Ogi constrói narrativas extremamente visuais, e todo som dele poderia virar um filme.

Interessante, me explica isso melhor
A viagem por esse universo criado pelo MC paulistano fica ainda mais rica quando acessamos as diversas anotações que ele mesmo fez aqui no Genius, vale a pena conferir. Ali descobrimos que a faixa bônus “Faro de gol” deveria ter integrado uma coletânea do jogo FIFA. Porém, a participação de vários artistas brasileiros foi cancelada. Todo dia um 7×1 diferente. E, por fim, quais a características de um disco clássico? Talvez uma delas seja encontrar sempre uma coisa nova que passou despercebida na audição anterior. O  é um desses discos.

Nosso tempo já acabou, espero te ver novamente


3º. 2ª Via, Um Barril de Rap

É fato que o Distrito Federal tem seu nome consagrado nos anais da história do hip-hop brasileiro. Desde GOGCirurgia MoralViela 17 à PacificadoresTribo e Hungria, o rap em BSB sempre foi prolífico e forte nacionalmente. Ainda assim, existia toda uma cena underground que os ouvintes de rap não conheciam, cena essa que começou a ganhar bastante destaque com as Batalhas de Rap e o Um Barril de Rap também foi responsável por apresentá-la para o resto do Brasil.

Lançado no finalzinho de 2015, o 2ª Via foi o segundo trabalho fruto da união de FroidYank e Sampa (dessa vez com Disstinto). Os meninos de Brasília, com um rap mais largado, cheio de rimas que fogem do comum, referências que passeiam e são retomadas entre as faixas e instrumentais simples, foram na contramão do rap já consagrado na capital e fizeram de forma independente um dos álbuns mais autênticos que o rap nacional já teve o prazer de receber. Conseguir ter autenticidade solo já é algo louvável, fazer isso em grupo é algo mais difícil ainda, os membros do UBR pareciam estar imersos na mesma viagem e com sintonia, cada um à sua maneira, conseguiram expressar e condensar em álbum suas frustrações, dramas, sonhos, dúvidas e crenças de um jeito que há bastante tempo nenhum grupo novo de rap havia feito.

Como exceção do single “Vatomanocu”, os títulos de todas as faixas do álbum são nomes de documentos ou fazem referência à outras obras (“Mágoa Para Elefantes”“O Resgate Do Soldado Brownie”…). O conteúdo das faixas às vezes remetem à algo que esses documento representam ou possuem algum contexto presente no trocadilho das obras referenciadas, às vezes não. Sem uma construção muito linear no conceito do álbum, ou com rimas com um sentido muito óbvio, os MCs conseguiram construir uma obra imersiva e que a narrativa vai ganhando cada vez mais valor a cada ouvida. Mesmo tendo escutado todas as faixas milhares de vezes nos últimos anos, feito anotações no Genius, buscado, entendido alguma brincadeira interna ou referência à BSB que eu não conhecia, parece que o 2ª Via sempre me traz algo novo. O flow mais melódico de Froid e uma pegada que muitos consideram mais filosófica, o jeito que Yank consegue construir sentido com trocadilhos que parecem não ter sentido nenhum e a voz mais grave e rimas diretas de Sampa, se completam quando feitas em conjunto. O UBR era um dreamteam de MCs e o 2ª Via o masterpiece dessa união. O grupo acabou e acho que não vai mais voltar, mas o álbum está aí e se eles tiveram só um ano pra tentar salvar o milênio… Acho que conseguiram.


2º. Castelos & Ruínas, BK’

Ignorado por anjos, um garoto da Glória desabafou com demônios e que bom que o fez. Fazendo dessa forma Bk’ não sabia quantos caminhos abriria. Na opinião de muitos o melhor álbum não só da década, mas na disputa de melhor álbum desse século dentro do rap nacional, o nome de BK’ não será jamais esquecido. O carioca e seu álbum, foram a terceira parte de uma cruzada que começou com “Sobrevivendo no Inferno” dos Racionais em 1997 e foi sequenciada por Emicida em sua mixtape de estreia. Por quê? Ao levar um álbum underground e focado exclusivamente no que ele tinha a dizer, sem apoio, aos ouvidos de TODOS os fãs de rap de todo o território nacional, o rapper trouxe a visão ampla de que a cultura possuía muito mais destinos possíveis, além do que lhe era mostrado.

Muitos podem discutir sobre álbuns tão bons ou tentar mostrar outros tão impactantes, mas não me espere pra discutir o fato de que antes, Abebe era apenas um MC do grupo Néctar Gang, conhecido largamente somente no Rio de Janeiro e por alguns gatos pingados em outras áreas, com seu alcance quase nulo se comparado a outros MCs de sucesso. Num dia de chuva qualquer ele entrou no estúdio com JXNVS e El Lif, e alguns outros membros da Pirâmide, disposto a contar suas vivências. Com louvor, o jovem mostrou como era conviver entre o céu e o inferno do Rio de Janeiro. E o que sobra disso tudo? “Amores, Vícios e Obsessões” foi premiada como a melhor canção do ano de 2016 pela Genius Brasil e seria a primeira música-solo a alcançar 100 mil visualizações no site (números + qualidade, não parece mágico?). Além disso, toda e qualquer produção relevante lançada após C&R tem influência de Bk’. Se hoje nós temos Baco (que apareceu com a descentralização do rap trazida por Bk’) e Djonga (ele próprio não tem vergonha em falar disso), o sucesso de Sant (que antes também alcançava um público relativamente menor), o surgimento de Pineapples (gravadoras de extremo sucesso com um quê de consciência), tudo é graças aos quadros que Bk’ pintou no Catete em 2016.

Um álbum largamente analisado por inúmeros canais, resenha e entrevistas, hoje com mais de 4,5 visualizações no YouTube somente no disco completo, já ficou claro que o principal do álbum são suas ligações com a dualidade. Ruínas de sofrimento durante o dia e castelos de felicidade numa noite na Lapa. Ou seria o contrário? Entre numa roda de apaixonados pelo hip hop e pergunte: qual a melhor música do álbum? Obtenha entre 4 ou 5 respostas. Não sei quantos MCs terão essa honra em vida, mas o que se sabe é que quando o rap nacional parecia que entraria num eclipse de ideias, com pouca ou nenhuma produção atemporal, Bk’ nos apresentou o próximo nascer do sol.

Vida adulta é pagar contas, mochila pesada nas costas
Minhas linhas são minhas apostas, um brinde aos lucros e loucuras
Eu sei que tenho de sobra no estoque, munição
Mas se eu erro o primeiro, explano minha localização
Sons de outras dimensões, contrariando as previsões
E pra não ser mais um, sigo na sombra.

BK’ em “Sigo na Sombra” (Track 01)

1º. Roteiro para Aïnouz, vol. 3, Don L

Hoje em meio a todo esse desmande e tragédias, ouvir o álbum é como se deparar a profecias. Ninguém melhor avaliou e entendeu o cenário social-político nacional e do rap lá em 2017 como Don L. Não só um Cristo da visão bolsonarista foi usado para vencer as eleições e introduzir um reacionarismo como política de governo, como a “sauna hype” tomou cada vez mais o ideário da cena. A passionalidade do rap tem aqui uma voz contundente e passa por um certo saudosismo por parte dele, mas isso não é simplesmente um instinto conservador, é o sentimento de quem via que os rumos não estavam satisfatórios. O exercício de analisar seu presente tomando o passado como referência é capaz de trazer isso, e é então na qual se foca também a autorreflexão. Nossa melhor versão é uma constante auto-indulgência, uma saudade sem descolar da realidade, reconhecer as próprias limitações e saber quais lutas merecem ser enfrentadas. Esse sentimento de Don expressada na figura das obras de Aïnouz mostram essa personalidade inquieta e arredia, de não aceitar a normalidade e apatia. A vida manda ser forte, e aí me vem uma divagação própria quando encaro a capa do álbum: nas cenas finais de ‘Blade Runner’ o então anti-herói replicante evoca a filosofia de Hegel e confabula: ‘viver com medo é ser escravo.’ E isso é o que nos limita: a prisão, o medo da liberdade, encarar obstáculos e contradições. É não se ater à geografia no que tange existência, pertencimento, vida. O maior labirinto é interno. Outro momento que me vem ao pensar sobre à imagem é outra frase: ‘todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva.’ Essa frase mudou o fim do filme e me coloca a indagações que me apresentam a um desejo contínuo em não me contentar com o raso, o simplório. A insatisfação é também a coragem de ser livre, e que o tempo não se perca sem a arte. Muito mais que elogiável, eu fico grato com a obra de Don e que sejamos tomados pela coragem, honestidade e desprendimento que ela nos transmite. A vida pode ser sempre surpreendente.

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