O isolamento social e a pandemia no novo disco do Inquérito, Flagra Rap fala sobre ‘i(SOL)lamento’

“A primavera sempre foi poética, e agora vai ser pandêmica, mas que seja libertadora, que exploda em cores e cubra todo esse ‘cinza corona'”
Foto por Cassia Belini

Neste novo disco, gravado durante o isolamento social que a pandemia devido ao COVID-19 nos impôs, há muitos trocadilhos do nome do disco, das faixas e ao longo das letras com a situação que estamos vivendo. Este elemento criativo já é uma de suas características, mas que transparece muito nos seus livros, camisetas e outros trabalhos visuais do Inquérito. De onde vem a inspiração para ideias como: contrastar o isolamento e o sol (com um sentido de liberdade), destacar a primavera como o ponta pé inicial para o disco ou descrever algo que nem existiu em “Saudade do Futuro”?

[Renan Inquérito] Então, é como você bem observou, isso já tá em mim faz tempo, não é de hoje, é um processo meio que natural saca? Quando vejo já estou fazendo. Começou na escola, quando escrevia a palavra “ponte” e fazia uma ponte com as letras, depois escrevia “muro” e montava um muro com as letras em pé, e aí nunca mais parei, depois descobri que isso se chama Poesia Concreta, mas aí já era grande, já tinha batido muita massa e até feito “Poesia Pra Encher a Laje”. Agora o “sol” dentro do iSOLamento vem pra iluminar não só essa palavra, mas também o período que vivemos, vem pra lançar luz na sombra que a “cúarentena” nos trouxe (já tô brincando com as palavras de novo rs), sol é uma nota musical também, e é uma nota alegre, aberta, traz vida pras músicas. Escolhi a primavera pro lançamento porque queria uma data simbólica, mas nunca pensei antes que lançaria um disco na mudança de uma estação, (só se fosse de trem ou de rádio rs), mas é que esta estação (primavera) bem no meio desse período (pandemia) é muito simbólica, é a estação das flores, do renascimento, tem muito a ver com o que vivemos hoje, acho que todo mundo queria esta tal primavera desde abril se pudesse rs. A primavera sempre foi poética, e agora vai ser pandêmica, mas que seja libertadora, que exploda em cores e cubra todo esse “cinza corona”.

Assim como no disco Corpo & Alma (2014), você encerra com depoimentos gravados por pessoas. Em 2014, a ideia era mostrar um pouco da relação dos fãs com o Inquérito, já em i(SOL)lamento temos depoimentos de crianças e pessoas sobre o isolamento, mostrando os diversos sentidos desta palavra. Por que encerrar este disco desta forma?

[RI] Esse processo de isolamento foi muito diferente pra cada pessoa, muito particular, cada um reagiu de uma forma, então eu decidi trazer a mesma questão pra várias pessoas diferentes, falei: “diga uma coisa que o isolamento te trouxe e uma coisa que ele te levou”, assim os depoimentos mostram como cada pessoa foi afetada na sua individualidade. Isso mostrou como tudo depende da forma como você encara a vida, de como está naquele momento, fisicamente, mentalmente e até espiritualmente. Não é a minha voz falando, são eles, em primeira pessoa, uma espécie de testemunho, algo direto, real, eu gosto disso, de não ter intermediários na mensagem, se eu pudesse fazia isso sempre. Essa faixa iria se chamar AC/DC (Antes do Corona e Depois do Corona), mas aí na última hora decidi batizar ela com o nome do disco, ela encerra o disco trazendo uma visão do isolamento muito mais ampla do que as minhas músicas, é uma faixa plural, coletiva, sincera, espontânea, essa é sua força.

Foto por Cassia Belini

Os últimos discos do Inquérito foram marcados por excelentes colaborações com outros artistas. Durante a pandemia, muitos artistas estão aproveitando para se conectar, mesmo que a distância, com pessoas que nunca haviam trabalhado. O Marcelo D2, por exemplo, produziu um disco em casa e chamou inúmeros artistas para participar dessa produção, que inclusive foi transmitida no Twitch. Você optou pelo caminho contrário, produziu um disco sem compartilhar muitas informações e apresentou um trabalho muito mais pessoal e introspectivo, com poucas participações. O que te levou a fazer esta escolha?

[RI] Na verdade não foi uma escolha, eu não tinha um projeto, nem sabia que as músicas que estava fazendo soltas iriam virar um disco, esse álbum foi como um filho não planejado, quando eu vi tinha acontecido, então eu recebi com muito amor, mas com as condições que tinha naquele momento, que não eram as melhores, sem muita estrutura, nem financeira, nem técnica, sem equipe, sem patrocínio, sem nada, só com a vontade e a criatividade. Contei sim com a ajuda de alguns amig@s, parceiros, na base do capital afetivo mesmo (isso a gente tem bastante rs), aproveitando todo o espírito de solidariedade que este período nos trouxe, mas tive que fazer muita coisa sozinho, e isso faz com que as coisas levem mais tempo, é mais demorado e mais cansativo. Porém ele é o que é, fala por si só, foi feito em 2 meses e meio dentro de um quarto, não tinha como ser diferente, é introspectivo, pessoal, visceral, acho que não há mais separação entre a minha arte e a minha pessoa, é tudo uma coisa só.

Diante do contexto que estamos vivendo, os artistas não estão podendo realizar shows. Alguns, para manter a relação com seu público têm optado por se aproximar a partir das redes sociais e das lives. Como tem sido para o Inquérito? Como foi foi gravar o disco neste contexto? E como é fazer o lançamento de um disco enquanto vivemos nesta situação de pandemia?

[RI] O Inquérito vai fazer a primeira LIVE com show mesmo no próximo dia 26/09, vai ser o lançamento do disco, até então só havíamos participado de lives de outros parceiros ou feito coisas mais simples, como bate papo e sarau. Gravar o disco nesse contexto foi desafiador e também libertador, literalmente, foi uma maneira de desafiar a dor que o isolamento nos trouxe e ao mesmo tempo de se libertar dela, música como salvação mesmo, mas nem digo salvar a vida inteira saca? As vezes salvar uma manhã, uma tarde, uma noite, porque a vida é feita da junção dessas coisas menores, então as vezes salvava um pequeno momento e isso já era o bastante pra continuar vivendo. Devido as condições atuais não podemos fazer um lançamento presencial do disco, mas esperamos que logo tudo volte ao normal e a gente possa matar essa vontade de todos nós.

Em “Pandemômio” você sintetiza um pouco do que estamos vivendo:

Vários passando pano enquanto outros tão passando Covid
Cloroquina como cocaína, passando vergonha à vista e nem divide
Uns pegando carona, outros pegando corona
Paramo’ de fazer rap, mano, paramo’; agora nós só leciona

Você, além de MC é professor de Geografia e já compartilhou algumas histórias do período que lecionava, como a reação dos estudantes quando Chorão morreu. Você enxerga o rap, e a cultura Hip Hop como um todo, com um papel social similar ao da educação? E qual a importância dessa função diante da era das Fake News e desinformação?

[RI] Sim, acredito no hip-hop como uma grande e poderosa ferramenta pedagógica, um grande aliado na educação, não a toa vários professores já utilizam em suas aulas, existem várias pesquisas sobre isso mas o louco é que não existe uma regra, uma recomendação, cada um insere a sua maneira. Dentro das Fundações CASA por exemplo a maioria dos arte-educadores são artistas do hip-hop, tamanha é a potência de resgate dessa cultura, tamanha é sua proximidade com a periferia, lugar de onde vem a maioria dos jovens que estão ali. A história do Brasil é uma grande Fake News desde o 1º dia certo? Ela diz que o Brasil foi “descoberto” por um português, e simplesmente ignora todos os habitantes que já viviam aqui antes, como ignora até hoje os moradores das comunidades tradicionais que habitam esse país, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras e indígenas, diz que a princesa Isabel libertou os negros por pura bondade, não pela pressão externa porque o Brasil era o único país que ainda tinha escravidão, não pelo medo da população negra ser maioria, e ensinam isso até hoje, ou seja, essas “Fakes” não são tão “News” assim né? O rap sempre falou dessas coisas, sempre desmascarou isso, sempre cantou que o Brasil é sim um país negro, não é branco de olho azul como mostram na novela, como pintaram Jesus, esse racismo escancarado, essa criminalidade tão presente, essa exclusão que a periferia vive, enfim, tudo isso que a sociedade “descobriu agora” o rap já aponta em suas letras há 30 anos. É como se a sociedade fosse tipo um Cabral, que chegou agora no rolê e acha que tá descobrindo a roda, mas a roda já existe há muito tempo, já tá até gasta de tanto rodar.

Em “Poesia de Para-brisa” você conta uma história de uma mãe brincando com a filha, que finge dirigir o carro em que estão. A bela história é uma metáfora a nossa vida e o fato de não termos controle sobre ela. O “pandemônio” revelou para muitas pessoas esse falso controle sobre nossa própria vida. Para você, essa e outras reflexões do disco, como o autoconhecimento a partir do isolamento e a valorização das relações, irão mudar as pessoas ou tudo voltará a ser como antes? Vai existir um mundo Pré-Pandemia e Pós-Pandemia?

[RI] É como disse anteriormente em outra pergunta, é um verdadeiro AC/DC, antes do Corona e Depois do Corona, acho que esse período vai marcar a história da humanidade pra sempre, e acho impossível sair dessa experiência sem nenhum ensinamento. Nem tudo o que aprendemos foi bom, foi prazeroso, pelo contrário, escancarou a individualidade, a mesquinhez do ser-humano, o quanto ele liga o “foda-se”com o próximo. Mas também tivemos muitos exemplos de solidariedade e superação. Valorização dos profissionais da saúde e da educação, que foram tão importantes nesse momento, seria muito bom que isso se perdurasse. Acredito numa antropofagia da pandemia, ou seja, vamos absorver apenas aquilo que aprendemos e que nos fez bem, vamos aplicar isso no nosso dia-a-dia pós pandemia também, usar esse aprendizado depois e sempre. Espero e torço pra que a mudança não fique restrita apenas ao vocabulário e ao dicionário que com certeza sai desse período cheio de novas palavras e expressões, como COVID, CORONA, CLOROQUINA, QUARENTENA, RESPIRADOR, PANDEMIA, GRIPEZINHA, LIVE, LOCKDOWN, GRUPO DE RISCO, AUXÍLIO EMERGENCIAL, EM ANÁLISE, FICA EM CASA, e por aí vai… Pelo menos o Aurélio nunca mais será o mesmo rs.

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