A sonoridade melódica e lenta já são marcas exploradas pelo “Xamã do hip-hop moderno” nos seus dois álbuns solo: Janela (2015) e Verde Esmeralda, Cinza Granito (2017). Em ambos, Victor Xamã explora bem a dualidade entre cidade e natureza, um lado moderno e o “místico” da região Norte. Esse lado ainda é explorado pelo rapper no seu novo EP, intitulado Cobra-Coral:
Meu fascínio pela cobra-coral começou quando era criança e morava no Parque das Palmeiras, em Manaus. As ruas ainda eram de barro, na frente da minha casa tinha uma mata virgem. Então um dia eu a vi: uma serpente ameaçadora, que logo me encantou com suas cores.
O EP promete tratar sobre temas atuais como a própria pandemia de Covid-19, passeando pelo íntimo do artista, que também recai em sua mudança para São Paulo e suas próprias reflexões e transformações dentro desse processo. Cobra-Coral terá 4 faixas mais uma bônus na versão completa do projeto, e participações confirmadas de Yung Buda e Davzera. Todas as faixas foram produzidas no intervalo de duas semanas e mixadas e masterizadas pelo próprio Victor Xamã.
“Os anos se passaram, e hoje minha voz rasteja pelo Brasil. A minha sede por arte, assim como aquele ser escamoso, é furiosa e insaciável. De longe você vai temer ou amar essas cores fortes. Magia, transformação, troca, intuição, medo e atração. A serpente também mora em você. Cobra Coral é troca de pele, o cheiro da folha seca e do pau podre, e os sonhos se arrastando nesse resto de mundo”, diz Victor.
Nossa equipe conversou com Victor Xamã sobre a musicalidade, produção e inspirações de seu novo EP nesse período de quarentena e a sua mudança para São Paulo. Confira a entrevista completa:
Muito se fala sobre esse momento de isolamento ser uma oportunidade para refletir sobre si mesmo, sobre o mundo que queremos e, como você mesmo disse, “olhou para seu interior” num momento que coincidiu com a sua mudança para São Paulo. Essa ideia foi uma verdade para você? Quais reflexões você teve?
[Victor Xamã] Vivemos em uma época onde as coisas acontecem rápido e se movimentam sem controle, acho que o momento cedo ou tarde convida a uma introspecção, isso manifesta euforia, tristeza, ansiedade, boas lembranças e consequentemente isso tudo virou música. Não temos controle sobre as mudanças do mundo, apenas mergulhamos e nos adaptamos a elas.No seu último disco você comentou que a maioria das suas músicas tem uma sonoridade melancólica, mas que você não pretendia se prender a esse estilo. O que podemos esperar em termos de produção e sonoridade neste novo EP? E quem você chamou para colaborar na produção de Cobra Coral?
[VX] No trabalho ousei da versatilidade, acho que todo momento abre um espaço para uma reinvenção, experimentei texturas em músicas mais calmas e trouxe agressividade em músicas mais cadentes, a produção desse EP é intrigante pois todas as participações e gravações de instrumentos foram concebidas à distância. Ele conta com sax de Elizeu Costa, guitarra de RafaTronxo, vozes de Gabi Farias na faixa “Todos os Desejos no Teu Corpo Nu,” clássica produção de Neguim e a participação de Yung Buda e Davzera na faixa que leva o título do trabalho. Vale ressaltar que a quinta faixa é uma música bônus na qual participo, a faixa integra o EP ‘Reginaldo Rossi Love Tape,’ lançamento previsto para esse ano, trabalho colaborativo de Mayer Herrera & João Alquímico. Minha ideia de colocar essa música no EP “Cobra – Coral”, é convidar o público a conhecer novos artistas amazonenses e criar uma expectativa a esse trabalho muito autêntico que está por vir.Uma das características de suas composições é esse olhar pessoal com pensamentos sobre a existência, vida, relações. Pelo fato de Cobra Coral ter essa visão mais íntima, o que você procura com as participações? Seguir essa pessoalidade na forma de se expressar para cada colaborador? E você pretende seguir a linha do seu último disco que conta com poucas participações?
[VX] Esse trabalho carrega mais participações do que os anteriores, acho que isso é reflexo da interação (que era a ideia principal da vinda para São Paulo), a questão de fazer contatos e colaborações para a expansão do trabalho. Gosto de deixar bem aberto a personalidade de quem participa, desde um arranjo até as vozes. Isso surpreende e contribui pra atmosfera da obra.A cobra coral é conhecida, além de sua bela coloração, pela dificuldade para se diferenciar a verdadeira, que possui uma peçonha fortíssima, das demais, que não possuem peçonha. Você enxerga ali um aforismo, uma alusão, sobre certas problemáticas da vida humana, armadilhas e mentiras travestidas que nos deparamos ou que nos são impostas? E quando você fala em “se arrastar,” está travestido aqui uma reflexão sobre paradigma de movimento, conquista, invisibilidade?
[VX] O mundo é ingrato e sempre vai haver uma “competição saudável”, vivemos em uma época de julgamentos e afirmações, principalmente no caminho da música, que é recheado de falsas expectativas. Essa ambiguidade entre verdade e mentira está presente nas escolhas e vivências de todo o processo artístico. Se você opta por algo mais coerente e verdadeiro, consequentemente se torna mais difícil, a questão de “se arrastar” é essa persistência de fazer muito com pouco, de tirar leite de pedra, mas sempre com otimismo e verdade.Em “Sonho Lúcido” (2017), você escreve: “eu nasci pra criar asas, tô evitando criar raízes”. Essa “raiz” é um empecilho muito grande pra quem faz arte na região Norte, devido ao baixo incentivo e as diversas dificuldades encontradas, sendo necessário alguns se mudarem para o Sudeste a fim de ter uma qualidade e uma visibilidade maior no seu trabalho, deixando todas as raízes familiares e de amigos. Como você pensa em uma mudança para essa situação? Como você enxerga a situação do rap nortista?
[VX] Foi um movimento inevitável, sempre mergulho de cabeça em tudo que me proponho fazer, tive a oportunidade e decidi arriscar, mas acho que existem outros caminhos, talvez mais difíceis, não sei dizer. Acho importante cultivar esse sentimento “família”, mas sair do óbvio me conforta, me tira do centro e me inspira. O Rap Nortista não se limita só ao estado do Amazonas, isso tem que ficar bem claro, observo uma organização e a qualidade dos trabalhos aumentando substancialmente, por isso, vocês precisam consumir a arte feita nos 7 estados do Norte do Brasil, temos cultura de sobra.