“O sul tem algo a dizer”, com essa simples frase Andre 3000 fez história no Hip Hop em 1995, na premiação de rap mais importante nos Estados Unidos, The Source Awards, . O sul em 95 era praticamente invisível na cena estadunidense, mesmo assim se constituía, e ainda se constitui, como um local de criatividade. O MC de Atlanta fez daquele palco um momento para criticar o eixo Leste-Oeste de maneira simples e direta.
Corta para 2024. Não poderia ser mais emblemático que no disco que homenageia os 50 anos de Sabotage, caso o rapper estivesse vivo, que Vandal expressasse o sentimento de muitos envolvidos no Hip Hop nacional. Sabotage, desde a sua morte, é lembrado pela frase “o rap é compromisso”, de uma música homônima que muitos sabem de cor e reverberam a ideia (ou pelo menos a intenção).
O compromisso hoje, como o MC de salvador bem descreve, é outro: a fama, o dinheiro e todos os vislumbres que isso trás para um artista na era das redes sociais e no apogeu do neoliberalismo globalizado. A identidade original social do rap e, consequentemente, do Hip Hop fica em segundo plano. Porém, talvez o mais grave de todo esse contexto são algumas das coisas que acompanham essa nova configuração.
A música que serve como um espaço de denúncia torna-se contraditória quando os artistas que esbravejam sobre as diferentes formas de preconceito se associam nas redes sociais com influenciadores ou mesmo outros artistas com casos de racismo, homofobia e transfobia, em algumas situações com julgamentos já encerrados na justiça – como ocorreu com Baco ou o projeto Poesia Acústica da Pineapple que possuem colaboração com Luiza Sonza, artista que respondeu na justiça por ter cometido racismo contra a advogada Isabel Macedo e fechou acordo para encerrar o processo.
Os versos que exaltam as mulheres, falando de respeito e paternidade, se esvaziam quando o artista faz colaboração ou tem em sua gravadoras ou grupos agressores de mulheres e pais ausentes.
O jargão “pretos no topo” ao mesmo tempo que tem força entre jovens e se estabelece como o fio condutor da temática de muitos artistas, também dá dinheiro a financiadores e campanhas que são comandadas por empresários em sua maioria brancos. E ainda sobre esses empresários: são inúmeros os casos de artistas reféns de práticas que aproveitam muitas vezes da inexperiência das promessas que surgem de forma meteórica na cena.
Esse esvaziamento não para só na música, como aponta Vandal, até mesmo a religião também sofre com todo esse contexto incentivado principalmente pelas redes sociais. Como foi o caso do livro infantil do Emicida, a obra “Amoras” foi vandaliza pela mãe de um estudante em Salvador nas redes socias.
E nós como “mídias de rap”, incluindo a Flagra, sem o apoio financeiro e reconhecimento do público e dos artistas, nos vemos também reféns dessa mentalidade que dita de certa forma o ritmo e as regras. Não estamos isentos de críticas e por mais que façamos um trabalho em outra direção, ainda nos vemos pegos em buscas de números e atenção, pois, no fim do dia, engajamento é dinheiro e isso paga as contas.
Não há como negar que esse verso do Vandal, em uma música que nos resgata esse sentimento praticamente ancestral com Sabotage, que viveu em tempos de certa forma mais simples, nos leva a refletir sobre o rumo do rap nacional e do Hip Hop e sobre até quando iremos tolerar o sequestro da nossa cultura.
Assim como André 3000, Vandal usou o pequeno espaço que lhe foi ofertado para fazer uma crítica direta e contundente. Da mesma forma que o eixo RJ-SP ainda continuam a centralizar as discussões da nossa cena, artistas de outras regiões são marginalizados no sentido mais infeliz dessa expressão. Mesmo assim, um artista da Bahia mostra que podemos fazer muito mais.